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Crônica: Andar de ônibus é a experiência com o mundo

Ao longo do Dia Mundial Sem Carro, comemorado no dia 22 de setembro, O POVO Online publica uma série de crônicas sobre as várias formas de estar e se movimentar pelo mundo

10:09 | 22/09/2015
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Cinthia Freitas
Estagiária do O POVO Online
cinthiafreitas@ opovo.com.br

Andar de ônibus é mais do que cumprir trajeto. Com atenção, a vivência pode ser mais fixadora do que ‘passageira’. Para mim, é a experiência com o mundo.

O contato diário forçado e quase íntimo com o outro, completo desconhecido disfarçado de familiar, é um exercício de humanidade. Enxergar o espaço do outro, a existência do outro, e como o conjunto dessas existências é constitutivo da realidade possível, aonde vamos nos encontrando/ encaixando/ encantando, é uma maneira de romper as zonas de conforto.

É como recomeçar todos os dias a lição de que ‘o mundo não é feito só do que cabe nos nossos desejos’. Quando nos colocamos diante do outro, o questionamento é caminho inevitável e necessário, e o encanto é uma escolha. Assim, todos os dias, através do transporte coletivo, escolho o encanto.

[SAIBAMAIS3]Em pequenos movimentos diários, a vida se desvela através do cotidiano dos ônibus, assim como a cidade se transforma através dos portais de vidro, abertos ou fechados.

É uma jovem grávida que sobe, acompanhada de um rapaz tão jovem quanto, e uma vida que se desvenda nas imaginações coletivas daquele espaço, tão evidente pelo volume da barriga e ao mesmo tempo tão misteriosa pelos prazeres e sofrimentos ocultos. É o vendedor que passa os dias a andar em círculos com uma caixa de pastilhas na mão, e outras seis na mochila jeans que pende molenga pelas costas, repetindo em tom ora sincero, ora mecânico, a trova do trabalhador.

É o sacolejo do 77- Parangaba/Mucuripe lotado – e imagine em dia de chuva – acompanhado pela transformação das ruas, que alcançam, numa só reta, a boemia e diversidade universitária do Benfica e a efervescência de gentes e temperaturas do Centro, desaparecendo mais adiante numa orla pomposa que parece desconhecer os próprios caminhos, que acabam nas ruelas da favela e campos de futebol travestidos de lixão do Serviluz.

É a espera amenizada pelo casal que se beija na parada, ajudando a compor o cenário da cidade. É a gentileza do olhar de quem segura sua bagagem, sem nem saber o quanto mais de peso aquele gesto aliviou.

O ônibus é espaço para fazer brotar experiências além da superficialidade bruta. Paciência, humanidade, empatia ou indiferença, tudo ao mesmo tempo sendo compartilhado por anônimos, no anonimato. Dar significado a tudo isso, no entanto, é a forma de costurar e sustentar os cenários de nossas vidas comuns.

O cotidiano, assim distraído, comum, parece simples, superficial, mas cada detalhe da vida é um mistério e um espelho. E o outro é o nosso reflexo.

Observar é importante. Além do encontro, o espanto, que nos serve, tanto ou mais, para não esquecermos do que é ser humano.

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