Feminização da voz: Ceará realiza primeira cirurgia do tipo na rede pública de saúde
Decisão de realizar o procedimento de feminização da voz decorreu de situações de agressões e preconceitos sofridos por Davina Morais, 33. Cirurgia chamada glotoplastia de Wendler ocorreu no Hospital Leonardo da VinciA auxiliar administrativa Davina Morais, 33, foi a primeira mulher trans a realizar a cirurgia de feminização da voz, conhecida como glotoplastia de Wendler, na rede pública do Ceará. O procedimento cirúrgico ocorreu no dia 10 de agosto, no Hospital Estadual Leonardo da Vinci (Helv), unidade da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (Sesa).
Em 2021, Davina deu início ao processo de acompanhamento no Serviço Ambulatorial Transdisciplinar para Pessoas Transgênero (Sertrans), da Sesa. A auxiliar administrativa destaca que foi assistida e dispôs de um direcionamento correto para dar continuidade à transição.
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A decisão de realizar o procedimento de feminização da voz decorreu de situações de agressões e preconceitos sofridos por Davina.
“Tinha um desconforto de falar em público, de falar com pessoas desconhecidas e mandar áudio, inclusive, mandar áudio foi um dos exercícios que eu comecei a fazer muito recentemente por conta da voz”, menciona.
Diante disso, Davina começou a pesquisar quais cirurgias eram pertinentes para o caso dela. A glotoplastia, até então, só estava disponível na rede particular de saúde e, devido ao alto custo, a auxiliar administrativa descartou a possibilidade de realizar o procedimento.
“Quando o ambulatório Sertrans fechou a parceria com o Hospital Leonardo da Vinci, fiquei muito feliz porque a cirurgia era algo muito distante pra mim. Saber que fui selecionada para fazer parte do projeto e que seria a primeira a fazer esse procedimento... eu fiquei radiante”, relembra.
O resultado pode ser notado entre o terceiro e o sexto mês posteriores ao procedimento. Davina relata que antes da cirurgia era necessário fazer o ajuste vocal para que a voz ficasse semelhante ao timbre feminino.
“Eu acabava o dia com exaustão vocal, ficava rouca, perdia o fôlego, ao fim do dia eu evitava falar, me causava inflamação, já me ocasionou calos nas pregas vocais, porque fazer o ajuste traz certas consequências. Agora, não preciso mais. Além do conforto de ter uma voz condizente com o meu gênero, me traz essa questão da saúde”, relata Davina.
Como é feita a feminização da voz
A coordenadora do Serviço de Otorrinolaringologia do Helv, Débora Lima, detalha que o procedimento de feminização da voz ocorre a partir da redução do comprimento da corda vocal. Ela menciona que não é necessária a realização de cortes externos.
“A gente faz uma modificação na corda vocal. A pessoa que nasceu com o gênero masculino tem uma corda vocal mais longa e pode ter, também, uma massa maior, dessa forma ela vibra de uma forma diferente e o som sai mais grave”, prossegue.
Débora explica que a cirurgia é realizada em diversas etapas, contudo, a principal delas é a redução do comprimento da corda vocal. “A gente dá dois pontos na corda vocal a fim de diminuí-la, dessa forma ela se assemelha à corda vocal feminina”, acrescenta.
Para que não haja ruptura dos pontos, a otorrinolaringologista recomenda que a paciente fique em repouso da voz durante 15 dias. No que tange às demais atividades, como caminhadas, não há restrições.
“A gente orienta a suspensão de algumas atividades físicas pesadas porque a pessoa vai fazer força e pode quebrar esses pontos. Para caminhar, ir ao shopping ou à casa de algum familiar, não há nenhum tipo de restrição”, exemplifica.
A profissional pontua que o acompanhamento psicológico é essencial para que a paciente esteja a par das alterações que podem ocorrer nas cordas vocais, uma vez que a cirurgia é irreversível.
Questionada acerca do procedimento em homens trans, Débora mencionou que, normalmente, este público consegue obter êxito na mudança de voz por meio da hormonioterapia. Ela cita, por exemplo, casos de mulheres cis que fazem o uso de anabolizantes.
“O anabolizante é à base de testosterona, podendo levar ao aumento de massa muscular, além de aumentar o tecido que vibra, e o tecido que vibra crescendo, acaba reproduzindo uma voz mais grave”, explica.
Contudo, ela destaca que procedimento cirúrgico não é descartado. “É uma cirurgia menos popular, menos feita, porque é menos necessária. É mais utilizada em pessoas que fizeram a hormonioterapia mas não responderam”.
Alcançar a frequência da voz feminina
Para que a mulher trans, de fato, consiga alcançar a frequência da voz feminina, que é de aproximadamente 200 hertz - unidade de medida utilizada para indicar a frequência de algo que se repete, como ondas sonoras ou sinais elétricos - é necessário o acompanhamento de um fonoaudiólogo.
“A paciente pode até conseguir fazer um som mais feminino só com a fonoterapia, porque na fono é trabalhada a elevação da laringe e expressão vocal. Às vezes a situação da paciente é tão leve que na fono ela consegue corrigir, não sendo necessário fazer a cirurgia”, complementa Débora.
A coordenadora de Serviços de Fonoaudiologia do Helv, Wigna Raissa Leite, foi responsável por acompanhar Davina no processo, pré e pós cirúrgico. Ela cita que, antes de realizar o procedimento, a paciente tinha um alcance de 120 hertz (hz) e, após a cirurgia, o número aumentou para 190, 200 hz.
“Utilizamos um software específico para avaliar a voz da Davina, por meio dele conseguimos chegar à frequência de 190, 200 hz”, frisa Wigna.
Após a cirurgia, Davina foi submetida à aplicação de laserterapia, técnica utilizada para acelerar o processo de cicatrização das cordas vocais. Além disso, a paciente precisou comparecer a dez sessões pós-cirúrgicas, realizadas semanalmente, que tinham a finalidade de aperfeiçoar a qualidade vocal.
“A cada sessão eram realizados exercícios específicos que também poderiam ser feitos em casa. O sucesso da cirurgia da Davina se deu, principalmente, à adesão dela, porque ela sempre foi muito dedicada, nunca faltou às sessões, seguia orientações e tinha o acompanhamento psicológico há algum tempo”, pontua Raissa.
A fonoaudióloga destaca que as execuções realizadas na fonoterapia variam de acordo com as necessidades da paciente.
O que é preciso para fazer a cirurgia?
O encaminhamento para as cirurgias de feminização da voz é realizado por meio da Central de Regulação do Estado. A busca pelo procedimento parte principalmente de pessoas em processo de transição de gênero, como as atendidas pelo Serviço Ambulatorial Transdisciplinar para Pessoas Transgênero (Sertrans).
O serviço da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (Sesa) oferece assistência de equipe multiprofissional composta por assistentes sociais, endocrinologistas, enfermeiros, psicólogos e psiquiatras. Para a cirurgia, as pacientes precisam fazer uso de hormonioterapia há pelo menos seis meses e ter acompanhamento psicológico há dois anos.
Cirurgias de otorrinolaringologia
De outubro de 2020 a outubro de 2024, o Hospital Estadual Leonardo da Vinci realizou 4.054 cirurgias de otorrinolaringologia. Dos procedimentos mais realizados, conforme a unidade hospitalar, estão: adenoamigdalectomias, cirurgias nasais (correção de desvio de septo, cartuchos e sinusite) e cirurgias de ouvido (tubo de ventilação e timpanomastoidectomias).
Entre janeiro e outubro deste ano foram contabilizadas 839 cirurgias de otorrinolaringologia.
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