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Em Fortaleza, apenas 13 crianças com microcefalia estão matriculadas na rede de ensino municipal

Maioria das crianças com Síndrome Congênita da Zika entra na idade escolar em 2020. Das 55 crianças diagnosticadas na Capital, apenas 13 estão matriculadas
13:04 | Jan. 08, 2020
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Tipo Notícia

Lara Sofia irá completar quatro anos de idade em janeiro, época em que a vida escolar começa. Entretanto, é provável que a menina não consiga se matricular no ensino básico em 2020. É que Lara Sofia é uma das 174 crianças confirmadas com Síndrome Congênita da Zika (SCZ) no Ceará, segundo relatório do Ministério da Saúde (MS), e as creches próximas de sua casa, no bairro José Walter, não possuem cuidadora para acompanhar a criança com microcefalia. Em Fortaleza, apenas 13 alunos com SCZ estão matriculados na rede de ensino do Município. 

A mãe de Lara, Eliseuda Lima, 35, precisou largar o emprego de zeladora para se dedicar integralmente ao cuidado da filha, e agora enfrenta a dificuldade de encontrar escola para ela. Como a pequena ainda não tem cadeira de rodas, a mãe precisa carregá-la no colo. “Ela tem 18 quilos e para mim fica longe andar com ela nos braços para matricular em outro bairro”, explica.

Lucilene Brito, 25, moradora de Juazeiro do Norte, por outro lado, conseguiu matricular Luiz Pedro, 4, desde os dois anos de idade na escola. Mas não foi fácil: precisou exigir da Secretaria de Educação do município uma cuidadora, e acompanhou o filho com microcefalia na escola até a profissional ser contratada.

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“Aqui onde eu moro [no Sítio Carás do Umari, zona rural de Juazeiro do Norte] são duas crianças com microcefalia. Eles estudam na mesma escola, e sempre que podemos estamos juntos”, conta. A coleguinha de Luiz também conseguiu uma cuidadora na instituição de ensino. “O Luiz se desenvolveu mais depois da escola, ele adora os coleguinhas”, comemora a mãe.

As dificuldades são compartilhadas pelas 90 famílias da Associação Filhos de Benção (AFB), representante de familiares de crianças com SCZ no Ceará. De acordo com a instituição, o número de crianças associadas matriculadas com cuidadoras mal chega a 20.

Fortaleza

Dados da Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (SME) indicam que o município conta com 332 profissionais de apoio escolar - todos em atuação. É um aumento de 2.193% no número de profissionais existentes em 2014, época em que existiam apenas 15 profissionais.

Em nota, a SME confirma que 13 alunos com SCZ estão matriculados na rede de ensino, “assistidos no processo educacional, de acordo com as suas necessidades específicas, assegurando os suportes e recursos de acessibilidade física e pedagógica”. A supervisora do Núcleo de Educação Inclusiva e Diversidade, Vivian Salmito, explica que os profissionais de apoio escolar são enviados por demanda a cada distrito educacional.

A orientação é que os familiares de crianças com deficiência e outros transtornos sejam matriculadas e tenham suas condições notificadas. A instituição de ensino deve passar a demanda para o Núcleo, que visitará a escola e encaminhará o profissional de apoio.

“Mesmo que na escola não tenha profissional, é para a mãe matricular mesmo assim”, afirma Vivian, que garante o direcionamento de cuidadores. O pedido e a matrícula podem ser realizados durante todo o ano. Ainda, crianças com SCZ têm o atendimento mais agilizado pela secretaria.

Saúde

Eliseuda também reclama do funcionamento das unidades públicas de saúde. “Para ser atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a gente passa quase um ano. Principalmente por um neuro, que eles precisam mais por causa das fortes crises convulsivas”.

Ela conta que já demorou um ano para conseguir consulta com neurologista no Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce (Nutep). Segundo ela, a instituição desmarcava constantemente o atendimento. Por isso, a mãe precisou recorrer a neurologistas vinculados ao sistema privado de saúde. Já outros recursos, como fisioterapia diária e o fornecimento de suplementos e fraldas de Lara, foram conseguidos na Justiça.

Lucilene também precisou recorrer ao sistema de saúde privado para o acompanhamento do filho Luiz Pedro. Ela se queixa de o SUS disponibilizar apenas 15 minutos de fisioterapia, três vezes por semana.

Nutep

O diretor do Nutep, Lucivan Miranda, afirma que atualmente a instituição atende aproximadamente 60 crianças com microcefalia, dos 1.200 pacientes com outros transtornos. Elas são acompanhadas até os 14 anos de idade, duas vezes por semana, a depender do grau de necessidade.

“O que as mães das crianças com microcefalia precisam entender é que, além delas, há crianças com outros transtornos que precisam ser igualmente atendidas”, afirma Lucivan. “É uma situação muito complexa”, conclui, referindo-se também ao atendimento escolar que enfrenta o mesmo cenário de alta demanda.

A coordenadora das Regionais da Saúde da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Aline Gouveia, informa que dos 55 casos confirmados de SCZ em Fortaleza, 29 são acompanhados pelas unidades de saúde desde 2015. Os outros pacientes teriam mudado de cidade.

Cada criança é atendida em diferentes níveis de atenção, definidos por equipe multiprofissional. “É muito singular o atendimento, que vai desde a necessidade clínica, até outras necessidades que a criança vem a apresentar”, explica a coordenadora.

Mas a AFB adiciona mais reclamações à lista: existem diagnósticos de crianças que ainda estão em aberto, além de os tratamentos multidisciplinares já serem básicos demais para crianças de quatro anos. De acordo com boletim epidemiológico do MS, 37 casos de SCZ estão em investigação e 93 são prováveis no Ceará.

Outras demandas da Associação Filhos de Benção (AFB) em relação à saúde são cadeira de rodas, órteses, roupa de neoprene e acesso à cirurgias.

Acompanhamento multidisciplinar

O Zika ganhou destaque nacional ao ser declarada Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) em novembro de 2015, um mês após a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco notificar aumento do número de casos de microcefalia no estado.

Desde então, o País tem desenvolvido planos para diagnosticar, estudar o Zika Vírus e acompanhar pessoas contaminadas. Transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o mesmo vetor da Dengue e Chikungunya, o arbovírus causa complicações neurológicas - em especial a microcefalia em bebês cujas mães gestantes contraíram o vírus.

De acordo com boletim epidemiológico do MS, o Brasil soma 3.474 casos confirmados de SCZ, sendo que mais 2.659 casos estão em estágio de investigação e 743 estão classificados como “prováveis”.

Para acompanhar os afetados pelo vírus, o governo o Ceará criou centros de acompanhamento de desenvolvimento infantil com atendimento multidisciplinar. Eles incluem fisioterapia, terapia ocupacional, otorrinolaringologista, oftalmologista, neurologista, psicólogo e assistente social.

“Por tabela, outras crianças com problemas de saúde relacionados ao neurodesenvolvimento foram beneficiadas, o que é bastante positivo”, afirma Robério Leite, infectopediatra do Hospital São José (HSJ). Elas são assistidas com a estimulação precoce, que auxilia os neurônios a se recuperarem, ainda que parcialmente. O tratamento é mais eficaz principalmente nos dois primeiros anos de idade, mas deve continuar durante todo o período de vida.

Como a microcefalia afeta os familiares?

Eliseuda já tinha ouvido falar sobre a microcefalia nos telejornais. Era o assunto do momento em 2015 por causa do surto de Zika no Brasil e as suspeitas de que o vírus estava relacionado com o aumento de crianças nascidas com microcefalia. No quarto mês de gestação e tendo contraído o Zika, Eliseuda nem imaginava que Lara Sofia poderia nascer com sequelas.

Foi após o parto que a então zeladora descobriu que Lara Sofia tinha microcefalia. As mutações eram invisíveis durante as ultrassonografias pela posição da bebê no ventre de Eliseuda. “O cefálico dela foi 27.5 centímetros”, conta a mãe. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a medida padrão mínima para a cabeça de recém-nascidos é 32 centímetros. “O médico só falou ‘sua bebê nasceu com microcefalia e provavelmente só vai sobreviver até os seis meses de vida’”, relembra.

Os sete primeiros meses foram os piores para Eliseuda. Lara Sofia chorava muito e tinha muitas convulsões, o que tem melhorado ao passar dos anos. No hospital em que conseguiu atendimento fisioterápico para a filha, Eliseuda também começou a frequentar o psicólogo.

“É bom, né, porque é muita coisa para a gente dar conta. Às vezes a gente acha que tá ficando doida, porque é muita coisa pra resolver. E às vezes a gente é negada, né, esquecida pelo governo também”, desabafa.

Lucilene e o marido desenvolveram princípio de depressão após o nascimento de Luiz Pedro. Eles sequer sabiam o que microcefalia era quando o filho nasceu em dezembro de 2015. “Não acreditava que o meu filho tinha esse problema, pois olhava pra ele e parecia um bebê normal”, explica.

Leia mais: Mães de crianças com microcefalia sofrem de depressão

Mas Lucilene foi resiliente e continuou lutando pelos direitos do filhos e da família. Após seis meses, quando Luiz já tinha acompanhamento, ela procurou uma psicóloga para ela e o marido. “Agora”, conta aliviada, “eu e meu marido estamos bem. Aprendemos a nos adaptar ao Luiz”.

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