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Mercado internacional: perfil online leiloa fóssil traficado do Cariri cearense

Pesquisadores já denunciaram a ação ao MPF-CE; órgão tem cerca de sete procedimentos criminais em curso na procuradoria de Juazeiro do Norte
15:55 | Nov. 11, 2020
Autor Catalina Leite
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Catalina Leite Repórter do OP+
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Tipo Notícia

A venda de fósseis na Europa é uma atividade legal e muito comum. Existem até empresas especializadas na preparação do fóssil, atividade em que os resíduos da rocha são retirados e o fóssil fica perfeitamente à mostra. Em uma plataforma de leilões online, a vendedora alemã Annesuse Raquet leiloa um fóssil impecável de pterossauro por no mínimo 23,4 mil euros.

Para a Europa tudo estaria bem, exceto pelo fato de o pterossauro em questão ser brasileiro - mais especificamente de Nova Olinda, no Cariri cearense - e, portanto, é fruto de tráfico. O “espécime absolutamente raro”, como descrito no site pelo expert em História Natural, Manuel Quiring, é um Tupandactylus imperator, pterossauro descoberto na Formação Crato e que viveu entre 113 e 125 milhões de anos atrás, no período Cretáceo.

Pesquisadores brasileiros já denunciaram a ação ao Ministério Público Federal do Ceará (MPF-CE), que agora precisará cumprir uma série de burocracias para tentar o repatriamento do fóssil. De acordo com o Código Penal, é crime contra o patrimônio “usurpar” bens da União. A pena é de um a cinco anos de detenção e multa. 

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Como explica o procurador da República Rafael Royal, da MPF de Juazeiro do Norte, fósseis são patrimônio cultural brasileiro. Dessa forma, tudo que envolve o manuseio ou transporte deles deve ter autorização da União. Igualmente, tudo o que não for autorizado é uma “usurpação”, ou seja, tráfico - ainda que esse termo não conste na legislação.

O problema é que a venda de fósseis na Europa é lícita. Assim, o MPF-CE precisará identificar onde o pterossauro está, comprovar que ele é brasileiro e investigar se o vendedor tinha conhecimento da proveniência ilícita do bem. Comprovando que o fóssil é obtido por meio de um crime no Brasil, o País consegue apoio europeu para repatriação.

No caso de Annenuse, que está leiloando o pterossauro por milhares de euros, a descrição do site já informa que o Tupandactylus imperator é brasileiro. Ela ainda afirma que o fóssil é “de uma coleção antiga, sem herança cultural nacional” e que “não há restrições de comércio ou exportação”.

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Segundo a paleontóloga Taissa Rodrigues, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a justificativa apresentada de “coleção antiga” e “sem herança cultural” é uma maneira de dizer que o fóssil supostamente foi exportado do Brasil antes de 1942. O ano marca o estabelecimento dos depósitos fossilíferos como propriedade da Nação, a partir do qual torna-se ilegal o transporte e manuseio deles sem autorização

Ela analisa que a plataforma utilizada para leiloar o pterossauro garante não vender bens ilegais. Assim, definir o marco histórico seria uma forma de contornar a regra. “Isso é muito improvável. Nessa época, os fósseis da Formação Crato não eram explorados comercialmente. A maioria desses fósseis começou a ser explorado nas últimas décadas. Eu duvido que eles tenham uma documentação mostrando em que ano o fóssil chegou no exterior”, explica.

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O que favorece o tráfico

O paleontólogo Álamo Saraiva, professor da Universidade Regional do Cariri (Urca), está há mais de 20 anos “batendo na mesma tecla” e denunciando o tráfico de fósseis no Estado. “Eu me sinto, às vezes, cansado. O sistema está absolutamente todo errado”, comenta.

Segundo o pesquisador, uma série de situações favorece o tráfico e enfraquece as medidas preventivas. Uma delas, diz, é o fato de a Agência Nacional de Mineração (ANM) dar concessões de exploração, sem responsabilidade com os fósseis, aos chamados exploradores do calcário laminado. “[A Bacia do Araripe] é reconhecidamente uma das três mais importantes áreas fossilíferas do mundo e a ANM deu a concessão para alguém explorar como se não tivessem fósseis lá”, critica Álamo.

Além disso, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) do Crato foi fechado em dezembro de 2018 e substituído pela ANM, agora localizada em Fortaleza. Após três décadas de atuação do DNPM no Cariri no combate ao tráfico, a região perdeu um órgão em posição estratégica

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Para Taissa, a ausência de paleontólogos dentro da ANM facilita o tráfico internacional. “A ANM é o órgão responsável pela fiscalização, só que tem pouquíssimos paleontólogos trabalhando lá. Tem duas ou três pessoas para o Brasil todo”, diz. Na prática, faltam profissionais para fiscalizar, visitar minas e instruir a Polícia Federal nos processos de fiscalização.

Procedimentos em aberto

O Cariri é definitivamente o mais afetado pelo tráfico de fósseis, por ter espécimes raros ou únicos que agregam valor de mercado. Só no MPF localizado em Juazeiro do Norte, estão abertos cerca de sete procedimentos criminais para apuração de suspeitas de tráfico.

O mais antigo é de 2014, envolvendo mais de cem mil fósseis. Somente agora ele está chegando a uma conclusão que envolverá a repatriação dos materiais pré-históricos - tudo custeado pelo Brasil. Esse procedimento foi protocolado pela própria Taissa, após palestra sobre como denunciar suspeitas de tráfico.

Segundo ela, o mais comum é pesquisadores lerem artigos científicos que descrevem fósseis brasileiros localizados em museus estrangeiros. Casos como a da venda por internet são menos, ou quase nunca, monitorados, em razão da enorme quantidade de sites envolvidos no processo.

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Para denunciar suspeitas de tráfico de fósseis, basta acessar o site do MPF, fazer o cadastro e preencher o formulário para protocolar a denúncia.

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