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"Deixem a contemplação em paz"

Análise de Jáder Santana, editor-assistente do Vida & Arte
22:04 | Jan. 05, 2018
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Tipo Notícia

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A dúvida sobre a condição social do garoto descamisado na foto mais discutida destes primeiros dias de 2018 é sintoma da estupidez que não nos abandona. Os que se envolvem na polêmica, reproduzindo como definitivos argumentos que não se pretendem como tal, miram os seguintes doze meses como campo livre para o debate lacrador que tornou as redes sociais um espaço de disputa de gritos. Ganha quem berrar mais alto.

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Fotografia não é acaso. O instante decisivo de Cartier Bresson, aquele do salto na poça d’água, não é fruto de um acidente. Semioticamente falando, é bobagem notar a fotografia como signo acidental. A imagem capturada já nasce com o destino de significar seu objeto, seja para o fotógrafo, no ato do clique e em suas escolhas de composição, seja para a audiência, que incorpora à intenção do criador sua própria bagagem de prazeres e preconceitos. Peirce, pai de uma semiótica que leva seu nome, fala de “propriedades internas”.

Também é fundamentalmente baseado em signos, representações e interpretações que se enxergou na foto feita por Lucas Landau uma metáfora da pobreza e do abandono. A criança negra - que poderia ou não ser pobre e abandonada - traduz nosso repertório de racismo estrutural. Uma gênese que mal consegue se disfarçar na crítica grosseira dos que afastam discussões de classe e veem na imagem o registro de uma legítima emoção pueril. Guiados por um fetiche opressivo, trocamos o tempo justo da contemplação pela contagem dos minutos necessários para a elaboração de uma tese furada sobre poder e castas

[SAIBAMAIS] 

Em trabalho para a agência Reuters, Landau entregou uma imagem em cores. A fotografia que ganhou o mundo veio em preto e branco, numa clássica manipulação cujo resultado mais instantâneo é a comoção de quem vê. Sem perceber, fomos conduzidos magistralmente pelo fotógrafo e seus editores até a mais barata das emoções. A banalidade do debate, fruto dessa comoção, ajudou a empobrecer as qualidades da imagem. Quase ninguém teve a chance de ver a fotografia pura, sem a baliza das opiniões inflamadas.

A grande beleza da imagem de Landau é a contemplação misteriosa a que se entrega a criança. Em outra fotografia divulgada pelo autor, é possível ver o garoto de costas, ainda fascinado pelos fogos. Seu encantamento durou pelo menos o instante entre os dois cliques. Ao fundo, pipocam os flashes dos celulares, gerando imagens que também chegarão às rede sociais, tão céleres e vazias quanto as polêmicas de todos os dias.

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