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Dezesseis pobres primaveras
Vida & Arte

Dezesseis pobres primaveras

| Inédito | A escritora Argentina Castro apresenta hoje o conto Dezesseis Pobres Primaveras, produzido com exclusividade para o Projeto Letras&Livros. Ação - comemorativa aos 30 anos do V&A - reúne podcast, programa na TV O POVO, evento e livro
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O menino estava sempre por ali, no quintal de minha mãe, a conversar com meu irmão mais novo entre bichos e coisas que pertencem aos bichos: ração, água e as sujeiras oriundas das fezes e urinas. Certa tarde, como era de costume, liguei para saber se estava tudo bem em casa. E, foi através da voz embargada de minha mãe, que soube da triste notícia.

O menino, negro e pobre, vivia com a mãe e mais alguns outros irmãos e irmãs. Todos com idades aproximadas, superlotavam a pequena casa. Juntos, formavam mais uma família moradora de favela. A irmã mais velha, mas ainda assim jovem, transformara-se, anos depois do ocorrido, em "mulher de traficante". Essa era a expressão usada pelas bocas "decentes" da tal "comunidade".

A mãe, que vivia de faxinar as casas de moradores que viviam em condições menos difíceis, tinha uma estatura pequena e os cabelos de um tom amarelado difícil de entender se, pela tinta, se pelo sol. E foi com as mãos puxando os cabelos que recebeu a notícia.

Seu filho, de apenas dezesseis anos, que vivia perambulando no quintal de minha mãe em conversas e risos com meu irmão mais novo, foi covarde e equivocadamente assassinado. Confundido com um inimigo de uma pessoa envolvida com o crime organizado, foi abatido, na saída do trabalho, com um tiro na cabeça.

Dezesseis anos, um tiro e lá se foi mais uma jovem vida, mais um corpo negro e pobre estendido no chão. Dezesseis anos, um sorriso doce e um olhar vivo.

Ainda sob o efeito da notícia, vejo na tv, Neymar, o jovem jogador milionário. É copa do mundo e escuto, na vizinhança, gritos de jovens pobres com uma felicidade tão alheia...

Sinto que, junto com esse menino de dezesseis pobres primaveras, morreu também um pouco de minha esperança. Essa mesma que cada dia, em mim, está tão escassa quanto água no semiárido. Lembro de Renato Russo que, no auge de sua doença (física e de alma) disse pra sua mãe: "mãe, meu lugar não é aqui, eu quero ir me embora mãe, eu quero ir pra um lugar melhor".

Durmo hoje com uma grande tristeza, como se tivesse perdido um irmão menor. Como se eu estivesse tão acorrentada quanto os negros no pelourinho, como se eu tivesse com uma doença terminal e fatal, dessas que tiram o seu chão e que lhe colocam em estado de susto, pavor, medo, revolta, tristeza e desolação...

Dizem que ele estava no lugar errado, na hora errada e com a bicicleta errada. O dono da bicicleta é que "deveria" ser morto. A segunda versão é que ele teria reagido a um assalto. Mas, seja lá o que for, está tudo errado, o mundo, as pessoas, todas as coisas. Sinceramente tenho sonhado acordada com esse tal fim do mundo, esse mesmo que, desde que me entendo por gente, torna mais emocionante e cheio de expectativa as conversas banais. Penso que seria a melhor solução. Já pensou todo mundo morrendo junto, fazendo companhia uns aos outros, abraçados, compadecidos com o medo, o desespero e a dor do outro? Todos: rico, pobre, branco, negro, jovem, velho, cristão, não cristão, alfabetizado, não alfabetizado, empregado, desempregado, feliz, infeliz, doente, saudável, os loucos e os supostamente "normais". Todos juntos, por favor, mas que se desfaça, como num passe de mágica, tudo isso que não tem dado certo, toda essa equivocada "humanidade". Que tudo comece do zero...

Para o menino e, pelas conversas que nunca tivemos, meu pedido de desculpa. Pela sua morte antecipada, o meu lamento mais profundo.

 

CONHEÇA A AUTORA

ARGENTINA CASTRO

Nasceu em Fortaleza. Terceira filha do vaqueiro Inácio e de Celeste, uma descendente dos povos indígenas. Nesse universo de histórias contadas por essa dupla que lhe botou no mundo, tomou gosto por ouvir e contar. A Antropologia foi a ciência humana que tocou seu coração. Com ela, aprendeu que pessoas e situações poderiam ser exploradas no ver, no ouvir e no escrever. Anda a engatinhar no mundo da literatura. Gosta de arriscar. Morrer de amor é com ela mesma.

 

PODCAST ANTOLOGIA

Disponível nas principais plataformas de streaming. Unindo ficção e jornalismo, é apresentado por isabel Costa e tem entrevista com Argentina Castro. Também é possível ouvir o conto Dezesseis Pobres Primaveras na voz da atriz Jéssica Teixeira.

Para ouvir: encurtador.com.br/auGLX

CONHEÇA A ILUSTRADORA

Dhiovana Barroso 

É cearense. Formada em Jornalismo pelo Centro Universitário Estácio do Ceará e estudante da licenciatura em Artes Visuais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará. Desde 2013 atua como quadrinista e ilustradora. Atualmente contribui com quadrinhos para o Vida&Arte, com publicações semanais.

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