O brasileiro gosta de se imaginar como parte de um povo especial, amado no mundo inteiro por sua cordialidade. O Brasil mítico é um país indisposto ao preconceito e vocacionado à alegria, onde a miscigenação harmônica entre as raças inaugurou uma cultura pacífica e colorida. Este retrato simpático onde o brasileiro se enxerga tão bem foi construído graças a uma tradição de ensaios amparada no talento literário de intérpretes célebres, a que pertencem nomes como Carl von Martius, Sílvio Romero e Gilberto Freyre. Suas letras ajudaram a inventar e difundir uma visão de brasilidade festiva hoje enraizada no imaginário coletivo nacional.
O novo livro da historiadora Lilia Schwarcz, Sobre o autoritarismo brasileiro, se contrapõe a essa tradição ensaística. O objetivo da autora é propor uma interpretação alternativa sobre o Brasil que explique a crescente onda de intolerância e violência que tomou o País desde 2013. Recém-lançado pela Companhia das Letras, a obra desconstrói o mito da democracia racial brasileira e demonstra como a construção de uma história oficial teve "um papel estratégico nas políticas de Estado, engrandecendo certos eventos e suavizando problemas que a nação vivenciou no passado mas prefere esquecer". Na estrutura dorsal do livro, Lilia Schwarcz explora a tese de que a história tradicional do Brasil ocultou os traços de um autoritarismo arraigado, de uma violência que se manifesta há séculos nos mais distintos campos da cultura.
A obra lança algumas perguntas de fundo: quem são, afinal, os brasileiros? Como explicar as manifestações abertamente antidemocráticas, racistas e misóginas que foram, desde o impeachment, normalizadas como efeitos colaterais da liberdade de expressão? Para respondê-las, Schwarcz volta ao passado, demonstrando de que modo a formação da sociedade brasileira consolidou uma estrutura onde a concentração de poder, a confusão entre público e privado e a desigualdade compõem as marcas mais evidentes de um país perversamente intolerante desde as suas origens coloniais.
Para a autora, os efeitos do autoritarismo são sentidos com mais intensidade pela população negra: a íntima relação entre história brasileira e racismo é o ponto que perpassa todo o livro. Vítimas de uma abolição tardia, mal resolvida, os negros sofrem no Brasil de hoje o peso dos "marcadores sociais da diferença". A exclusão e a invisibilidade negras se perpetuam na forma de um negacionismo histórico reinventado, que resgata o mito da paz entre raças no país e deslegitima a reivindicação política pelo direito à reparação.
Lilia Schwarcz vem de uma trajetória festejada e sensível à questão racial. Além de O espetáculo das raças, se destaca o livro Brasil: uma biografia, assinado em co-autoria com Heloísa Starling e lançado em 2015. Em 2017, foi a vez da Cia das Letras publicar uma cuidadosa biografia de Lima Barreto, onde a autora apresenta um novo olhar sobre a vida de um dos maiores escritores brasileiros do século XX, um carioca negro que permaneceu por décadas à margem do cânone literário. Embora não ofereça teses propriamente originais, Sobre o autoritarismo brasileiro vem somar à ótima produção da historiadora. O livro vale a leitura por sua capacidade de síntese. Em suas páginas, Schwarcz traz à tona uma faceta mais sombria da cultura nacional, expondo a crueza de uma verdade histórica que o País, cada vez mais paralisado por ondas de ódio, ainda insiste em não reconhecer.
Juliana Diniz é escritora, Doutora em Direito e Professora da UFC
Livros Para Entender O Brasil
Retrato do Brasil
Autor: Paulo Prado
Cia das Letras
Brasil: Uma Biografia
Autoras: Lilia Schwarcz e Heloísa Starling
Cia das Letras
Formação Do Brasil Contemporâneo
Caio Prado Jr.
Cia das Letras
A Formação Das Almas
Autor: José Murilo de Carvalho
Cia das Letras
Sobre o autoritarismo brasileiro
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 49,90
288 páginas