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Nosso amado Machado
Vida & Arte

Nosso amado Machado

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Pesquisei Machado de Assis por anos, mas não consigo escrever como especialista a respeito dele. Quando dou aulas, refiro-me a ele como "meu amado Machado". Auto-ilusão pura. Machado não é "meu amado", é amado por milhões de leitoras e leitores. Essa paixão, nós a temos expressado de diversas maneiras.

A popularidade de Machado iniciou nos jornais em que publicou quase todas as suas obras, inclusive cinco de seus reconhecidos romances. Esses jornais eram lidos pelos olhos e pelos ouvidos de todas as camadas da população de quase todas as províncias do Brasil do século XIX. Depois dos jornais, a popularidade machadiana continuou tempo afora até chegar à internet, meio no qual, finalmente, espalhou-se a imagem do Machado negro.

Machado como escritor popular, folhetinista, cronista, humorista, também se deixa ver nos temas que escolheu. Ao longo de toda a sua trajetória, ele se preocupou em narrar as possibilidades de ação dos mais pobres na sociedade escravista brasileira. Para pensar essas possibilidades, escolheu, em diversas obras, personagens mulheres que causam um piripaque na cabeça dos homens de elite (ou candidatos a elite), isto é, homens que têm ou querem ter terras, armas, dinheiro, escravos, mulheres e saber jurídico ou religioso. Gosto de me referir a esses personagens - meio brincando, meio a sério - como "homens tenhosos". O piripaque deles é mais ou menos assim: entre os personagens e entre os leitores estão os homens de elite, que pensam que todos à sua volta estão a seu serviço. As ideias desses homens dão a ver uma crise da capacidade de interpretação do outro e do mundo, já que suas ordens e vontades encontram mulheres que têm seus próprios planos e desejos.

Os homens tenhosos pensavam a literatura como uma maneira sofisticada e disfarçada de dar ordens às mulheres e às pessoas escravizadas. Àqueles que queriam a arte a serviço do poder, Machado escreveu uma literatura de crítica e problematização; uma literatura popular, em que o humor e a palavra dão limites à propriedade com anseios ao desmedido. Num sambinha de Noel Rosa, o personagem diz: "Vou fingindo que sou rico/ pra ninguém zombar de mim". Ou, se Machado fizesse um sambinha: "Vou deixando falar os ricos/ pra eles pagarem mico". Não por nada, é nosso amado Machado.

Atilio Bergamini é professor de literatura na Universidade Federal do Ceará e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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