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Deixa o corpo ir na frente
Vida & Arte

Deixa o corpo ir na frente

| CIDADE | Criado em 2018, o coletivo Tertúlia Black Vândala completa um ano ocupando ruas e demais espaços públicos de Fortaleza com ritmos musicais como black, soul, groove e funk
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Tertúlia Black Vândala
 (Foto: Nicolas Leiva/ Divulgação)
Foto: Nicolas Leiva/ Divulgação Tertúlia Black Vândala

Os passos são sincronizados, mas a coreografia nasce orgânica e atravessa o corpo. Dezenas de pessoas, reunidas em tardes de domingo para celebrar a Tertúlia Black Vândala, dançam nas ruas e demais espaços públicos de Fortaleza ao som de black music. Composta pelos DJs Aires/D (Jotapê Aires), Nego Célio, Memória e Projeto (Carlos Augusto Lima), Maarji (Mariana de Castilho), Tomé Braga Pinheiro, Gato Preto (Rafael Tavares), Kinas (Joaquim Sobreira Filho) e pelo produtor cultural Vicente Monteiro, a Tertúlia já se espalhou por localidades como Rua Instituto do ceará, Largo dos Tremembés, Praça dos Leões, Teatro Carlos Câmara, Ponte Velha da Praia de Iracema, Cuca Barra, Poço da Draga, Titanzinho, Mercado dos Pinhões, Theatro José de Alencar e chegou até o município de Icaraizinho de Amontada. Plural e diversa, a festa sempre gratuita e aberta defende uma importante resistência: a luta por uma Fortaleza de todas e todos.

O coletivo Tertúlia Black Vândala nasceu em fevereiro de 2018, no alvoroço de um Carnaval de chuva, suor e cerveja. Em sua conta na rede social Facebook, o DJ Memória e Projeto (Carlos Augusto Lima) partilhou um desejo: reunir amigos para tocar black, soul, groove e funk — ritmos diferentes dos escutados nos festejos da época. Tomé Braga, mobilizado pela provocação, instigou Vicente Monteiro e o proprietário do antigo espaço Casa Vândala uniu-se à proposta. "Por conta da não obrigação de se preocupar com o mainstream, após muitas conversas com artistas DJs, eu imaginava uma festa que unisse as pessoas em prol de uma causa. Fosse a arte pela arte, fosse a arte potencializando um discurso político", pontua Vicente. A primeira edição da festa, então, aconteceu ao número 164 da Rua Instituto do Ceará, no bairro Benfica. O convite foi aberto — todo mundo podia chegar e botar seu som. "Como foram sete DJs, a gente até frescou apelidando a festa de 'mais DJ do que gente'. O público foi pequeno, mas a diversão e entusiasmo foram grandes", lembra Nego Célio.

A Tertúlia Black Vândala não nasceu com propostas e formatos prontos, mas logo se criou no meio da rua — feito menino curioso, experimentou a organicidade de uma festa pé no chão, batente de casa. "A rua sempre foi uma extensão da casa e tinha que ser assim porque era Vândala", continua Vicente. Espaço democrático por excelência, a rua abriga os mais diferentes públicos: "A Tertúlia é uma festa que transborda amor, uma festa que vai gente de todos os lugares e de todos os estilos com o intuito de dançar", defende Nego Célio. Nas palavras do DJ Aires/D (Jotapê Aires), "a Tertúlia Black Vândala é uma experiência áudio/sonora e sensorial sem distinção de classes, cor e gênero. Nós, DJs, estamos ali apenas servindo como condutores da energia que a própria massa já nos transmite. É uma troca autêntica".

Manter a Tertúlia Black Vândala nas ruas, gratuitamente, é sobretudo um ato sociopolítico dos integrantes do coletivo. "A ocupação do espaço público em Fortaleza é muito dependente de ações institucionais: é uma ação da Prefeitura, do Governo, uma festividade, um Réveillon... Ou então é uma ocupação do espaço público visando o lucro, alguma festa particular, sempre essa relação mercadológica. Quando esse espaço público é ocupado de uma forma mais natural e intuitiva pelas pessoas, oferece um risco para esses lugares mais institucionalizados. Existe um medo que as pessoas ocupem as praças, a intimidade de seus bairro", observa Carlos Augusto. "Daí a importância da Tertúlia: ela se insere dentro de uma mobilidade de ocupação do espaço público. Insistir em fazer a Tertúlia gratuita é gesto político, é um ato bem ousado da gente. A Tertúlia é uma inflexão nesse modelo de ocupar a Cidade — não passa pela mercadoria, pela política cultural institucional; é um movimento intuitivo. A gente quebra essa tradição do medo, do não pode, do impossível, do receio que é estar na rua", complementa o DJ Memória e Projeto.

Defender uma outra lógica de ocupação da Cidade, entretanto, é um desafio, sobretudo, econômico. "Tem sido bastante difícil fazer a produção dessa festa sem incentivos financeiros. Alguns membros não têm outros trabalhos além do artístico com DJ e uma coisa é fazer uma festa para 100 ou 300 pessoas, outra coisa é quando essa atividade política e artística precisa alcançar mais que esse público", pontua Vicente Monteiro. Mas a força política da Tertúlia Black Vândala transforma o evento em mais que uma festa — é, de fato, uma coletividade que pensa na produção de Fortaleza. "Os incentivos que são recebidos em alguns locais na forma de cachê são guardados em um caixa para realizar a festa/dança em locais que não recebemos. Depois da primeira festa, a gente percebeu que precisávamos pensar em como continuar a fazer essas festas, em como isso poderia acontecer em outros territórios de conflito, em como a gente poderia 'reativar' praças, ruas e outros espaços da Cidade que não tinham atenção do poder público. A gente acredita na cultura: ela transforma as pessoas e os ambientes", finaliza.

Se o desejo de deixar o corpo ir na frente e ocupar cada espaço da Cidade mobiliza o coletivo Tertúlia Black Vândala, são as relações afetivas com esse projeto que enchem cada vez mais as edições da festa — sem datas já previamente estabelecidas, mas sempre divulgadas nas redes sociais do grupo. Para DJ Kinas (Joaquim Sobreira Filho), "a Tertúlia Black Vândala representa muito a ideia de estar junto. Muitas pessoas sentem isso ao ir para uma Tertúlia Black Vândala, sabe? Estar junto na questão do som, estar junto na questão de dançar junto, dançar cada um à sua maneira, mas conectados; estar junto no sentido afetivo mesmo da palavra, de se sentir próximo de outra pessoas. Acredito que a Tertúlia provoca isso nas pessoas e em nós mesmos, que fazemos essa celebração".

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