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Perdigotos ou uns reles casos de repartição
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Perdigotos ou uns reles casos de repartição

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Digno de preocupação é um jovem que não tenha esperanças; também, um velho que as conserve (é meu lema aqui nessa Companhia de Seguros, onde a cada dia vejo crescerem - em meus punhos e canelas - os pelos desse miserável inseto no qual vou me transformando!).

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Nessa imensa confraria de canalhas que nosso pobre país vai se transformando, é o caso de se perguntar: "Quem vai impedir nossas crianças de correr rumo ao despenhadeiro?", ou enfim: "Onde estará nosso apanhador nesse campo de vespas?".

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Dia desses, por uma circunstância do destino (mero acidente de ocasião, acreditem!), aqui na repartição fiz uma "bondade" com uma colega - mas logo descobri, sem acreditar, que as "boas ações" estão fora de moda. Ela, tal fogo em monturo, se espantou: "— Tem certeza que vai fazer isso?"; e mesmo ao ouvir a afirmativa ainda ponderou a vítima do favor: "— Seria bom você pensar melhor!". A minha inesperada "boa atitude" se propagou rapidamente pelos andares do velho prédio da repartição, e durante algum tempo vi colegas de trabalho abismados; incrédulos mesmo, uns vieram me consultar sobre a veracidade do fato; então, aproveitando a triste fama de um simples bom gesto, tascava-lhes uma frase piegas, falsa feita promessa de político: "— Feliz daquele que tem oportunidade de realizar uma boa ação!", e saia rapidamente para (com meus olhos sonsos) rir sozinho, mas choramingando cá por dentro.

Desde essa época, e só de sacanagem - para ver a cara de espanto dos colegas - tenho procurado de quando em vez fazer boas ações, mais para ver a incredulidade geral que pra barganhar minha vaguinha no céu.

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E por falar em repartição - que, como todo aglomerado humano, é um laboratório perfeito pra Deus e (por que não?) pro Diabo realizarem seus experimentos -, certa vez, ainda na década de 1990, surgiu e, também, se espalhou ligeiro (como toda notícia ruim) o boato de que alguns de nós seríamos devolvidos para nossos órgãos de origem. E para escapar de tal "degola" o funcionário teria que conseguir uma "função gratificada", que era uma espécie de pequena chefia. Os que já possuíam tal "honrosa comenda" desfilavam sorrisos, sem sequer se importarem com os outros (isto é: nós, a grande maioria, que não tínhamos). Um superior bondoso teve a ideia, baseado no famoso "jeitinho brasileiro", de sugerir que quem fosse da "casa" emprestasse (de fachada apenas, pois continuaria recebendo normalmente seus dividendos das mãos do colega no dia do pagamento); a ideia (apesar da óbvia ilegalidade) se mostrou genial, mas - novamente - apenas para nós, os ameaçados, pois logo revelou sua outra face: nossos melhores amigos nos viraram a cara, faziam verdadeiros malabarismos para não cruzarem conosco, nos evitavam como se fôssemos leprosos. Foi quando surgiu - para perplexidades das nossas ingênuas pretensões frustradas - a figura mais que detestada de um colega: sujeito mal falado, evitado até, com sua língua ferina a bisbilhotar fofocas, dentre outros vis males do serviço público; pois bem, este terrível servidor foi o único a nos oferecer ajuda: disponibilizou sua "gratificação" para quem quisesse usufruir.

Desde então tenho relativizado bastante as gentilezas e mau humores, os sorrisos e raivas, enfim - as boas e más ações humanas.

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