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O que pode um centro cultural ?
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O que pode um centro cultural ?

|Instalação-performática| Obra artística de Eduardo Bruno e Waldírio Castro é retirada de Centro Cultural Banco do Nordeste. Ato gerou debates sobre censura e homofobia
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Artistas Eduardo Bruno e Waldírio Castro acusam o Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB) de homofobia e censura de obra. 
 (Foto: Thiago Matine/ Divulgação)
Foto: Thiago Matine/ Divulgação Artistas Eduardo Bruno e Waldírio Castro acusam o Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB) de homofobia e censura de obra.

Na semana em que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu enquadrar a homofobia e a transfobia como crimes de racismo, o Ceará foi destaque nos principais periódicos e telejornais do País por uma restrição imposta pelo Centro Cultural Banco do Nordeste de Fortaleza aos artistas Eduardo Bruno e Waldírio Castro: espaço integrante da programação do 70º Salão de Abril, na última segunda-feira, 27, o CCBNB retirou da fachada do equipamento uma faixa com a frase "Em terra de homofóbicos casamento gay é arte" — instalação constituinte da performance O que pode um casamento (gay)?, selecionada para a mostra. A decisão não foi acordada entre os autores, a produção do evento e a instituição. O ato gerou um amplo debate sobre censura, homofobia e o papel da arte contemporânea.

A instalação-performática O que pode um casamento (gay)? (2019) integra o projeto artístico 7 performances de casamento, um manifesto "artivista" dos então noivos Eduardo Bruno e Waldírio Castro. Em um relacionamento há dois anos e meio, os artistas se casaram no último dia 14 de janeiro no cartório do Mucuripe — e convidaram, em um ato político, a Cidade a celebrar a união e a refletir sobre as vivências amorosas e sexuais da população homoafetiva e transexual em um País que mata um LGBTQI a cada 20 horas. Uma das 30 obras escolhidas para exibição no tradicional e renomado Salão de Abril, a instalação foi inaugurada no CCBNB ainda no sábado, 25, com cerca de 15 objetos relacionados à união de Eduardo e Waldírio: a certidão do casamento; os "convites" contendo dados acerca das violência sofridas pelas minorias sexuais no Brasil; e a própria faixa retirada pelo centro cultural.

Contendo obras de outros 14 artistas, a exposição do Salão de Abril no CCBNB durou apenas três horas. Em entrevista ao Vida&Arte, Eduardo conta que a indisposição do Banco do Nordeste com a faixa foi manifestada já durante o evento de abertura. "Na noite de sábado, a funcionária responsável pela programação das Artes Cênicas do CCBNB nos perguntou se a faixa já podia ser retirada e nós negamos — ela faz parte do trabalho, não é só uma divulgação. Nós solicitamos autorização, passamos por todos os processos de montagem e a Jacqueline Medeiros, uma das curadoras do Salão de Abril, acompanhou o processo. O BNB solicitou o recolhimento da faixa sob a justificativa de não atrelar o discurso ao banco", explica. Na ocasião, os performers marcaram uma reunião com o gestor do equipamento Gildomar Marinho para a terça-feira, 28. "Nos oferecemos para assinar a faixa, colocar a logomarca do Salão de Abril ou movê-la para a esquerda ou direita na fachada porque essa obra é um site specific, precisa estar nesse espaço para fechar um bloco de sentido. Mas, na segunda-feira, passamos pelo CCBNB e a faixa já não estava mais lá. É um ato de censura como ocorreu também com Queermuseu no Santander Cultural, com a Renata Carvalho na peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, com a Simone Barreto na Unifor Plástica", compara. "É um ato de censura e homofobia".

Para Waldírio Castro, a retirada da faixa é marca de um governo excludente com as diversidades. "Estou preocupado com a liberdade de expressão. Estou pensando se o 'desgoverno' atual vai censurar todo trabalho relacionado ao gênero. É muito estranho que um centro cultural, com uma certa independência, impeça uma manifestação artística. O nosso trabalho não fala diretamente de homofobia, mas de homoafetividade: a gente tenta fugir da violência a partir da alegria e da celebração, mas esse assunto sempre volta. É importante deixar claro que os centros culturais devem ser mantidos, mas tudo que é relacionado à cultura está sendo sucateado", pondera. Eduardo complementa: "O que pode um casamento gay? A resposta está acontecendo. Por que um centro cultural tem medo de lutar contra a homofobia? O CCBNB está com medo de fechar, o Gildomar nos disse que queria fazer isso de uma forma diplomática, mas não podemos aceitar homofobia em nome do centro continuar aberto. Isso fere a democracia. Os corpos LGBTQI não podem participar de outros lugares, não podem participar da rua, dos espaços públicos... Se em uma galeria de arte não podemos circular, nos retiramos. Não dialogamos com censura", enfatiza. Na terça-feira, a instalação-performática foi retirada pelos artistas — que picharam "obra censurada" na parede interna do salão. Na manhã de ontem, todos os outros artistas retiraram suas obras do CCBNB em solidariedade e protesto.

Por meio de nota, o Centro Cultural afirmou que: "A obra em questão faz parte do 70° Salão de Abril, organizado pela Prefeitura de Fortaleza e pelo Instituto Iracema, para o qual o Centro Cultural Banco do Nordeste cedeu espaço para algumas exposições. As obras foram selecionadas por uma curadoria contratada pelo Instituto Iracema. O Centro Cultural Banco do Nordeste Fortaleza não interferiu na exposição do artista, somente discordou da instalação da faixa na entrada do equipamento, afixada próximo à logomarca do centro cultural, descaracterizando a fachada do prédio e comprometendo sua identidade visual". Procurado pela reportagem do O POVO para esclarecimentos sobre a retirada da faixa, a ausência de diálogo com os artistas e a notícia de afastamento do gestor Gildomar Marinho do cargo, a instituição respondeu: "O Centro Cultural Banco do Nordeste mantém o posicionamento divulgado na nota anterior. O CCBNB lamenta a decisão pela retirada de obras de arte de suas instalações. O equipamento permanece à disposição do público com programação completamente gratuita, de terça-feira a sábado". Também interpelado pela reportagem, Gildomar Marinho afirmou não responder pela instituição e não atendeu mais as ligações.

Membro da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, a deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG) emitiu um pedido de informação requereu esclarecimentos ao presidente do BNB acerca do caso. "O Banco do Nordeste é uma empresa pública e deve seguir os preceitos do Estado brasileiro. A gente precisa garantir a diversidade e o princípio da não violência, ainda mais em uma comunidade que sofre tanto. É uma conjuntura muito difícil, mas estamos atentas e vigilantes", encerra.

Obras retiradas do CCBNB

Em reunião realizada na última quarta-feira, 29, artistas expositores do Salão de Abril e representantes da Secretaria Municipal de Cultura (Secultfor) acordaram a retirada de todas obras da mostra do Centro Cultural Banco do Nordeste. A mostra será reaberta no Centro Cultural Belchior na próxima quarta-feira, 5, às 19 horas.

Segundo a curadora do Salão de Abril Jacqueline Medeiros, "a preocupação da curadoria é manter um diálogo entre as obras apresentadas em cada espaço. O que pode um casamento (gay)? trata do processo do casamento homoafetivo que, por exemplo, posso elencar algumas obras que dialogam diretamente como os trabalhos de Anderson Morais, Garotos, que são desenhos de rapazes; o vídeo que considero autobiográfico de Jonas Van abordando questões subjetivas do universo trans; e as fotos Monstras, de

Lucas Dilacerda, cujo o título é autoexplicativo", pontua.

Para Lucas Dilacerda, que também retirou suas obras do CCBNB, o ato de saída foi político e indispensável. "Como nos alerta a faixa de Eduardo e Waldírio, vivemos em terra de homofóbicos. A escolha do local da faixa não foi aleatória, ela faz parte da pesquisa sobre intervenção urbana dos dois artistas. Uma vez que colocamos a obra na rua, ela fica vulnerável a qualquer tipo de intervenção. Desta vez, a intervenção foi do próprio CCBNB, uma intervenção de censura que revela a homofobia institucional que paira sobre nós. Diante da censura, nos restaram apenas duas opções: ficar ou sair. Pessoalmente, acredito que em vez de reagir de modo imediato, poderíamos ter parado e dar tempo ao pensamento para que imaginemos outras ações possíveis. Entretanto, a escolha de sair também tem sua potência política, não de fugir, mas de negar ficar no CCBNB. Nós negamos expor nossa arte em terra de homofóbicos". Já o artista William Pereira Monte acredita que "a partir do momento que acontece esse fato, tirar parte da obra sem consentimento e sem informar ao artista, a obra fica descomposta e a gente começa a pensar como está sendo de fato essa relação e a instituição e os artistas que compõem a galeria".

Gestor da Secultfor, o secretário Gilvan Paiva manifestou apoio aos artistas do Salão de Abril. "Toda vez que se constrói uma diferença dessas, é necessária uma ampla abertura e a capacidade de dialogar com essas expressões todas. É importante assegurar que a curadoria tenha plena autonomia". Administrado pelo Instituto Iracema, o Centro Cultural Belchior passa agora a integrar a programação da mostra. Para Davi Gomes, presidente do Instituto, "por ser um espaço democrático, diverso, a favor da liberdade de expressão, de gênero e artística, foi o local escolhido pelos artistas, com o apoio da curadoria e organização do evento para expor estas 10 obras de inestimável valor social, estético, político e cultural".
(Colaborou Ivig Freitas)

Perguntas do Vida&Arte não respondidas pelo CCBNB

O POVO: Em nota, o CCBNB afirmou que "não interferiu na exposição do artista, somente discordou da instalação da faixa na entrada do equipamento". A instalação da faixa foi aprovada e acompanhada pelos gestores do centro cultural?

O POVO: O proponente da instalação, Eduardo Bruno, garantiu ter marcado com o centro cultural uma reunião para terça-feira, 28, para dialogar sobre o pedido de retirada da faixa recebido ainda no sábado, 25. Antes da reunião, entretanto, a faixa foi retirada. Qual a justificativa do CCBNB?

O POVO: O CCBNB procurou os artistas para dialogar após a retirada da faixa?

O POVO: O Gildomar Marinho foi afastado ou realocado de seu cargo de gestão?

Artistas retiram obras do CCBNB

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