Quantos são Chico Buarque de Hollanda? Laureado na última terça-feira, 21, com o Prêmio Camões pelo conjunto da obra, que inclui teatro, música e literatura, o artista de 74 anos é indivisível. Nele habitam poeta, letrista e romancista, numa lavoura de palavra que varia conforme a estação.
Se é tempo de crise da canção, como parecia naquele início dos 2000, quando Chico decretou a morte do gênero pelo qual se notabilizara desde o fim dos anos sessenta, o escritor serve-se da prosa. E nela semeia uma lírica no diapasão de seu cancioneiro, equilibrada nos mesmos "tropos": a carnavalização, a vida da cidade, os amores, a língua, a duplicidade.
Interessa ao Chico pluriartista sobretudo a potencialidade da linguagem. Daí que a honraria, a maior da comunidade lusófona, refira-se genericamente a sua obra, afastando de si o impasse que é determinar quanto de cada Chico é merecedor da homenagem. Mais do compositor que do escritor? E o dramaturgo, qual a sua parte que lhe cabe nesse latifúndio?
Se ajuda, convém pensar em Bob Dylan, há pouco merecidamente aquinhoado com o Nobel de literatura. São as canções equivalentes a poemas? O gesto da academia sueca melindrou escritores de ofício e suscitou esse tipo de debate, de resto tacanho e ocioso. Porque, ao final, se Dylan produzia música ou literatura era questão desimportante. Sua obra - poético-musical, num trânsito contínuo, sempre desafiadora - é prova cabal disso. Ela existe, e é monumental.
O caso de Chico, porém, é diferente. Autor de seis romances, entre os quais Budapeste e Leite derramado, além de vasta fortuna como músico e dramaturgo , o brasileiro tem com a prosa relação mais íntima que a de Dylan com os livros. Dele não se pode dizer, portanto, que escreve episodicamente, tampouco que a literatura desempenhe na sua arquitetura expressiva um espaço menor.
Feito construtor, Chico ergueu uma edificação que se espicha muito acima das nossas cabeças e dentro da qual a palavra é exercitada (revirada, mastigada, erotizada e engolida) de variadas maneiras, seja na música, seja na literatura.
Ora, ideologia à parte, Chico é também escritor de mão cheia, goste-se ou não de seu trabalho, tenham os programas de pós-graduação interesse em estudá-lo ou não - há na academia um azedume com tudo que não cheire a canônico, mas fazer o quê? Reduzi-lo à retórica política de adesão a esta ou àquela bandeira é não enxergar a riqueza de sua produção literária.
Mas do que tratam suas narrativas? Retomo o ponto inicial: como arquiteto (inclusive de formação, inconclusa), Chico esquadrinhou um universo múltiplo no qual os tópicos mais frequentes nas canções (o feminino e o deslocamento, por exemplo) são reelaborados literariamente.
De igual maneira, estão nos livros também a atenção especial para as questões de poder e o senso afiado para os dramas urbanos, ambos marcantes em seus discos. Estorvo e Benjamim, dois dos romances mais antigos, retratam bem essa tensão do tempo presente, metaforizada na erosão de uma certa ideia de masculinidade.
Doutor em Antropologia Cultural pela PUC-Minas e especialista na obra de Chico, Gilmar Rocha afirma que, nessas obras, "temos a figura do homem frágil, debilitado diante da vida", vagueando como "animais do mesmo zoológico".
É de Rocha a noção interpretativa da obra de Chico como uma construção - tijolo por tijolo, num projeto de complexa engenharia. "Tanto nas letras rebuscadas das músicas quanto nos últimos trabalhos de romancista", escreve o pesquisador em artigo recente, "a escritura de Chico Buarque revela uma arquitetura bastante original". E completa: "Ele opera como um arquiteto das palavras, constantemente a (re) construir sua escrita".
Escritor, poeta e músico português, Valter Hugo Mãe concorda. Para o autor de A máquina de fazer espanhóis, Chico é principalmente um artífice que "não só leva a cultura brasileira ao esplendor, ele é pura convicção com argumento".
Em conversa com O POVO horas depois do anúncio da premiação do Camões para o brasileiro, Hugo Mãe não escondia seu entusiasmo. "Podemos discordar de algo que Chico pensa, não podemos acusar de haver má fé, desinformação", defende.
Para o escritor, a obra de Chico é "genial" e "seu legado é para sempre". O artista acrescenta: "Ele não precisaria de nenhum prêmio. Todos os prêmios precisam dele para serem justos".
Obras literárias
estorvo
(1991)
Leite Derramado
(2009)