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Contra a leveza
Vida & Arte

Contra a leveza

Edição Impressa
Tipo Notícia

Começo um decálogo, mas desisto depois de elaborar um punhado de regras contra a leveza, essa qualidade de pairar acima de problemas e parecer "polianamente" feliz e satisfeito embora as coisas estejam brabas - desemprego, faculdades à míngua, ataque à vida e por aí vai.

Não tenho nada contra a leveza, digo a mim mesmo. Até me sinto assim de vez em quando, o espírito como se polvilhado de açúcar, os bracinhos emplumados de pássaro arriscando voo antes de dar com a cara no chão. É bonito. Mesmo a queda é um troço bonito pra burro. A gente sentada no chão, os outros passando, depois a gente levantando apoiada nos joelhos, a crença íntima de que tudo há de melhorar. A positividade. Quer coisa mais enternecedora? Aquece
o coração.

Na verdade, tenho certa implicância com a leveza. Explico. Na escola tinha um amigo que era muito leve, leve até de mais, então os outros o tratavam como um traste qualquer, punham-no sempre em último lugar. E ele, volátil como um gás prestes a espiralar de tanta alegria, vibrando mesmo com as coisas ruins, aceitava aquilo tudo, o achincalhe dos colegas e a condescendência dos professores, que o viam como uma aberração.

Esse menino é muito alegre, diziam às suas costas. Levem-no até a sala da coordenação. Acabaram de pisotear seu caderno de exercícios e um livro de português novinho em folha. Sabem o guia de redação que a mãe lhe tinha dado? Pois é. Também o desfizeram em mil pedaços. Coisas da vida.

Achava que a leveza era o problema do menino. Então uma vez lhe disse: seja pesado, concreto, reaja. A vida mudou dali em diante, nunca mais foi levado à barra do inspetor, e os colegas o evitavam na fila do recreio. Se encostavam, mesmo de raspão, ele lhes devolvia sopapos. Tinha se tornado monstruoso, mais rugoso que o cimento queimado que pavimentava o chão da sala de aula. Não era o mesmo, não era outro. Não sei o que era. Outro dia soube que era um bem-sucedido empresário, estudara coisas que me fariam arquear sobrancelhas. Era feliz.

Pois bem. Disso ficou certa desconfiança com o excesso que mesmo agora carrego como quem leva fotografias de parentes mortos na carteira. Essa é a vó, ali o vô, nesse canto o Billy, um pé duro que foi atropelado no bairro da infância e cujo corpo enterramos num terreno baldio, à sombra de uma mangueira. Depois dele nunca mais gostei de bicho, menos ainda de "pet", salvo raras exceções.

Passei a desconfiar da leveza a partir dessa época. Entre 13 e 14 anos, já tinha uma carga que não combinava comigo. Era como um poder de super-herói que não tinha serventia senão identificar nos outros a sombra que todo mundo tem e esconde, seja por conveniência, seja por medo.

Então cresci assim, rindo se trágico e trágico se feliz. Como no teatro grego, as duas faces se olhando de canto, desconfiadas de sua totalidade. Felizes na queda e tristes no voo.

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