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Machado de Assis era negro
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Machado de Assis era negro

| escritor brasileiro | O Bruxo do Cosme Velho teve suas fotos esbranquiçadas em livros ao longo da história. Campanha realizada nas redes sociais convida leitores a usarem a tag #machadodeassisreal
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Imagens disponibilizadas gratuitamente no site Machado de Assis Real
 (Foto: REPRODUÇÃO)
Foto: REPRODUÇÃO Imagens disponibilizadas gratuitamente no site Machado de Assis Real

Machado de Assis era negro. Autor de clássicos da literatura brasileira - como Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba - ele teve sua foto clareada década após década. Tanto que muitos estudantes do ensino fundamental e médio - que sempre manipulam os livros do escritor carioca - saem da escola acreditando que o Bruxo do Cosme Velho era branco. Um site foi lançado por alunos da Faculdade Zumbi dos Palmares para fazer o alerta: Machado de Assis era negro.

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"Não aceitar a negritude de Machado de Assis comprova que o racismo está enraizado também na nossa cultura, isso mostra o quanto o brasileiro mantém o pensamento de sinhôzim e acha que uma pessoa negra não tem capacidade intelectual", argumenta a poeta cearense Mika Andrade. Também através das redes sociais, ela realiza trabalho de divulgação de autoras negras. "Nina Rizzi, Lubi Prates, Jarid Arraes, Conceição Evaristo, Natasha Felix", enumera Mika Andrade de sua longa lista de mulheres negras escritoras da atualidade.

Sarah Forte, professora de literaturas africanas em língua portuguesa da Universidade Estadual do Ceará (Uece), explica que medidas como a criação do site Machado de Assis Real (machadodeassisreal.com.br) são eficazes, mas sem a realização de um debate não são suficientes. "Faz parte de uma política da representatividade conhecer e ler escritoras e escritores negros, que abordem essas e outras temáticas em suas obras, nos fazendo conhecer um Brasil extremamente conflituoso e problemático quando o assunto é raça", argumenta Sara, que é doutora em Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para isso, ela indica, é importante ler e discutir contos machadianos como Pai Contra Mãe ou O Caso da Vara. "Já um bom início para compreender que os negros brasileiros não foram inventados a partir dos anos 2000. Já existimos há um bom tempo...".

Machado de Assis é o mais importante escritor brasileiro, mas ele não foi o primeiro negro a ter significativa produção e participação na nossa literatura. José Carlos Siqueira, pós-doutor em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), lembra que, antes de Machado de Assis, existiram Maria Firmina dos Reis e Luiz Gama publicando literatura de qualidade. "E estes exemplos nos mostram o grande esforço necessário para que escritores negros possam ser publicados. O que abre caminhos é o movimento negro agindo no seio da sociedade para que a cultura afrodescendente seja reconhecida, foi assim que Conceição Evaristo conquistou leitores e um lugar de destaque na literatura contemporânea", pontua José Carlos, que é professor da Universidade Federal do Ceará.

O site Machado de Assis Real, além de fazer o alerta sobre a verdadeira raça do escritor, propõe que os leitores façam algumas ações. A primeira é compartilhar fotografias dos livros nas redes sociais usando a hashtag #machadodeassisreal e a segunda é imprimir imagens de como o autor realmente era para colar sobre falsas imagens em livros. "É o conhecido 'antes tarde que nunca'. É preciso começar. Hoje vamos imprimir e colar manualmente em nossos livros. O livro que lemos na escola com ele falsamente retratado, será repassado corrigido para outras pessoas. Nós aprendemos errado e devemos garantir que essa - e outras - mentiras históricas sejam desfeitas. 'Sempre' é o tempo propício para a verdade", avalia Tatiana Lima, membro-fundadora do portal Ceará Criolo.

Ela lembra que o racismo está em várias esferas: "nas escolas, ele nos é ensinado quando não temos professores negros, quando à criança negra é sugerido que se 'ajeite' o cabelo 'inapropriado', quando só nos é indicado livros de autores brancos, mesmo que embranquecidos à força". Se passamos a vida lendo livros "brancos", indaga Tatiana Lima, como esperar que a notícia de que Machado de Assis era negro seja vista com naturalidade? Nem todos os comentários foram concordantes para a campanha. Nas redes sociais, algumas pessoas chegaram a falar em "enegrecimento" do autor carioca.

O pesquisador José Carlos Siqueira explica que o apagamento de Machado de Assis enquanto negro começa logo após a morte do autor, em 1908, quando o político e diplomata Joaquim Nabuco repreende escritor e jornalista José Veríssimo, em carta, por ter dito em seu necrológico (espaço publicado em periódicos dedicado a mortes) que o romancista era "mulato". "Nabuco inclusive afirma que Machado não gostaria de ser lembrado assim! Como não conhecemos nenhuma procuração deixada pelo escritor para Nabuco falar em seu nome sobre o assunto, podemos supor que o incômodo era de uma elite branca (Nabuco) que não gostaria que seu maior literato passasse para a posteridade como negro", finaliza o professor.

 

Ponto de Vista

O Brasil é um país marcado por um racismo estrutural, motivado historicamente por projetos políticos. Ao longo dos anos, na história do ocidente, percebe-se as múltiplas formas, ditadas por crises econômicas ou políticas e evidenciadas por uma segregação e discriminação racial. As dívidas históricas são profundas, tendo em vista a relação social de produção do Brasil Colonial que ultrapassou os limites do Brasil Império e caracterizou o Brasil República de modo racista e excludente. A escravidão, enquanto sustentação do projeto colonial de Portugal, foi a mais cruel experiência da história do povo brasileiro até esse século.

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Se entrarmos na lógica da produção cultural do Brasil, é possível observar e refletir sobre formas variadas de racismo que causaram um grande prejuízo para a história no que tange, sobretudo, à questão da representatividade racial. Machado de Assis, um dos maiores escritores da literatura brasileira, possuidor de uma obra vasta, estudado e reconhecido mundialmente, foi retratado ao longo dos anos como um homem branco. O que pode parecer uma questão sutil e simplista, deturpar os traços e a cor da pele de um escritor para que esse seja reconhecido nessa lógica social racista e discriminatória é algo sério, é uma fraude à memória da literatura nacional. Desse modo, a Faculdade Zumbi dos Palmares criou uma ação intitulada "Machado de Assis Real", recriando a foto clássica do autor e solicitando que uma nova imagem fosse posta em seus livros, de um homem imponente e negro, uma forma inicial e importante de corrigir esse erro, evitando que ele se perpetue e motivando as editoras e livrarias a fim de que a imagem antiga do autor seja substituída pela real.

*Charlene Ximenes é historiadora e estudante do mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará

"Só sabe sobre racismo quem vive na pele", diz idealizadora da hashtag

A figura de Machado de Assis tem aparecido com frequência nas redes sociais. O escritor está sendo rememorado por meio de levante na busca por representatividade do movimento negro. A hashtag #machadodeassisreal foi destaque nas redes sociais, principalmente no Twitter e no Instagram. As postagens variam entre dois tipos: a primeira compara duas versões da mesma foto de Machado de Assis, em uma ele aparece com a pele branca e a outra como realmente era, negro; a segunda mostra livros com a foto real do escritor sendo colada sobre a imagem embranquecida presente nos volumes da vasta obra do autor.

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Esta segunda ganhou fôlego nas redes a partir de um projeto idealizado na Faculdade Zumbi dos Palmares, por alunos do curso de Publicidade e Propaganda. Na iniciativa do site homônimo à hashtag, foi disponibilizada para download a verdadeira foto de Machado de Assis para que seja impressa e colada sobre as fotos impressas nos livros. "A ideia veio do intuito de buscar a retratação do Machado de Assis como realmente era. O projeto é uma luta pela eliminação do preconceito racial", define a coordenadora da iniciativa Enisete Malaquias.

Ela - que é coordenadora de extensão, cultura, esporte e ação comunitária da faculdade - explica que o propósito da ação é conseguir mudar o máximo de capas. "O que a gente quis foi corrigir e retratar uma situação de preconceito vivida lá atrás. E, para nós da raça negra é motivo de orgulho que um dos maiores nomes da literatura brasileira era negro", acrescenta.

Segundo Enisete, a ideia de promover o projeto online foi pensada para fazer a iniciativa atingir o maior número de pessoas nesse processo de retratação. A coordenadora ressalta esta fase de difusão nas mídias como a mais importante. "Apesar do projeto ter começado em 23 de abril, agora é o momento mais importante, de fazer com que o maior número de pessoas conheça o projeto. O resultado é que vai nos mobilizar e motivar para entender o que precisamos daqui pra frente", adianta.

O racismo aplicado historicamente ao retratar Machado de Assis com a pele clara vem sendo sentido durante toda a vida por Enisete. A profissional se afirma como negra e condena as frases tradicionais de que o racismo não existe. "Eu passei e passo por muitos momentos de preconceitos racistas e costumo dizer que: as pessoas que falam que hoje não existe mais racismo é porque não vivem com ele todos os dias", justifica.

Durante entrevista, a coordenadora relembra momentos em que sofreu julgamentos prévios por conta da cor da pela. Em um dos relatos, Enisete contou das várias vezes em que está no elevador social e é confundida com uma empregada doméstica. "Quando estou no elevador, as pessoas perguntam se tenho algum dia livre para fazer faxina", reconta.

O fato de morar em um condomínio de luxo não a exclui de ser evitada por alguns moradores quando está acompanhada da filha, de pele branca, que foi adotada por ela. "Quando estou no elevador junto com ela, as pessoas perguntam pela mãe dela", completa.

 

Frame de propaganda da Caixa Econômica Federal sobre Machado de Assis
Frame de propaganda da Caixa Econômica Federal sobre Machado de Assis

Campanha publicitária

Um comercial da Caixa Econômica Federal - veiculado em 2011, ano de celebração dos 150 anos da instituição bancária - utilizou um ator branco para interpretar Machado de Assis. À época, a propaganda, que mostrava o escritor carioca utilizando serviços de caderneta de poupança do banco, foi amplamente criticada. A Caixa lançou nota pedindo desculpas e refez o comercial, utilizando um ator negro para interpretar o Bruxo do Cosme Velho.

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