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Só o nome ficou...
Vida & Arte

Só o nome ficou...

|centro| Com problemas estruturais graves, a tradicional Escola de Música Luiz Assunção fechou as portas no último mês de novembro. Decadência do equipamento revela as fragilidades na preservação da memória da Cidade
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O telefone toca, toca, toca? E ninguém atende. Ao número 60 da rua Solon Pinheiro, no Centro de Fortaleza, os harmônicos sons de violinos, cavaquinhos, bandolins e pianos foram silenciados - agora, o estridente aparelho que toca em vão anuncia o fim de uma trajetória de quase 70 anos dedicados à arte. 

[SAIBAMAIS]

No último mês de novembro, a tradicional Escola de Música Luiz Assunção fechou as portas em decorrência de graves problemas estruturais e financeiros. Reduto de importantes nomes da música cearense e patrimônio histórico em processo de tombamento pela Prefeitura Municipal, o prédio secular abriga hoje apenas lixo, entulho e incertezas sobre o futuro. O encerramento das atividades do equipamento cultural marca mais um capítulo triste na historiografia do Estado.

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Construído em 1875 para fins residenciais, o casarão conta os mais de 140 anos de ascensão e declínio em suas paredes já apodrecidas e esburacadas. 

 

Nos tempos de prestígio - do edifício e do bairro -, a charmosa localidade atraiu a atenção do então deputado federal e posteriormente governador Paulo Sarasate. Filho do maestro Henrique Jorge, o político comprou e doou o imóvel à Sociedade Musical Henrique Jorge em 1950. O fecundo percurso cultural se iniciou ali: no mesmo ano, a Orquestra Sinfônica de Fortaleza abrigou-se no espaço, que se tornou ponto de encontro entre artistas.

 

Na década de 1990, Jairo Castelo Branco, um dos últimos remanescentes da antiga Sociedade Musical, tomou para si a missão de recuperar o edifício, desgastado e abandonado após a década áurea de 1950. "Meu pai, fiscal federal, dizia que eu era doido. 'Você quer fazer arte aqui no Ceará?', ele me perguntava. É verdade... Mas eu gosto, que eu vou fazer? Após a Orquestra Sinfônica, quem transformou aquele prédio em escola fui eu", recorda o musicista.

 

O Professor Jairo, como é conhecido entre os alunos, investiu dinheiro, tempo e desejo para transformar a antiga sede da orquestra em espaço de formação. Na sua gestão enquanto presidente e proprietário, renomeou o local em homenagem ao amigo Luiz Assunção (1902- 1987) - cantor e compositor maranhense radicado no Ceará. Uma de suas canções mais conhecidas, intitulada Adeus, Praia de Iracema, relembra os tempos idos do trecho litorâneo com os versos "Adeus, adeus/ Só o nome ficou". Ironicamente, hoje sequer o nome da Escola de Música Luiz Assunção restou na fachada do imóvel.

 

O silencioso fim da escola é lamentável, mas não surpreendente: há pelo menos uma década, a estrutura sofre severamente com as intempéries do tempo. Edificado com tijolos de barro e vigamento de carnaúba, o prédio pede profundas reformas para seguir funcionando sem oferecer riscos à segurança dos frequentadores. Coberto por um carpete puído, o assoalho tem tábuas soltas e buracos; as paredes descascadas estão inchadas pela ação de goteiras e infiltrações e o teto está sem revestimento. "Eu quase não tinha mais alunos porque estava tudo anarquizado por dentro. As tábuas caindo, as portas sem fechar? Aí os alunos chegavam lá e passavam só um mês, porque ficavam com medo da casa até cair por cima deles", lastima Jairo. Nesse ciclo de escassez, as dificuldades financeiras se avizinharam. Aos olhos do professor de canto e outrora tenor, a venda do ponto parecia ser a única solução viável.

 

"Eu cedi (a propriedade) para a minha filha, Edilaine Távora Castelo Branco, porque estava um sufoco danado e também precisando endireitar a minha casa. Minha filha e o marido estão resolvendo (a venda do prédio que abrigou a Escola de Música Luiz Assunção) e tô pedindo a Deus a todo instante que dê certo ela fazer isso por mim. Não tem por onde sair", entristece-se Jairo. "A escola está fechada, tem só um vigilante porque as coisas estão lá? Meus discos, edições que eu trouxe do Rio de Janeiro, recados, minhas lembranças do Theatro José de Alencar", complementa. Vasculhando o baú da memória, o musicista relembra que a Luiz Assunção foi o primeiro palco de cantores como Wesley Safadão, Juarez Júnior e Nayra Costa.

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Aluna entre o final da década de 1990 e o começo dos anos 2000, a artista Nayra Costa cresceu na música entre os ensinamentos certeiros - e sempre afetuosos, gosta de lembrar - do antigo proprietário da escola. "O Professor Jairo sempre me apoiou muito. Ele ia bem certinho nas dificuldades que eu tinha e me ajudava, sabe? Sinceramente, é uma pena o encerramento dessas atividades. Sou muito grata a tudo", ressalta. Ao falar da ex-aluna, Jairo é saudoso: "No começo, Nayra não cantava quase nada. Um dia, o padrasto dela me disse: 'O que você fez?'. Eu disse que dei aula", ri-se.

 

O ofício de mestre move Jairo. Desafiando a ação do tempo, o musicista carrega nas mãos a memória da Escola de Música Luiz Assunção. "Agora eu vou dar aula na minha casa, vou ampliar aqui com o dinheiro (da futura venda). Eu continuo a dar aula porque vivo disso e para isso". Em sua residência na rua Justiniano de Serpa, número 362, outra história se inicia.

 

Linha do tempo

 

1875

Edifício construído para fins residenciais

 

1950

Doado à Orquestra Sinfônica Henrique Jorge

 

1992

Nomeado Escola de Música Luiz Assunção

 

2015

Aprovação de tombamento pelo Comphic

 

2018

Encerramento das atividades da Escola

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