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Futuro do pretérito
Vida & Arte

Futuro do pretérito

| Artes cênicas | Cogitando a possibilidade de encerrar as atividades após 18 anos de atuação, o Grupo Bagaceira se desnuda em cena nesta quarta-feira, na Casa da Esquina, sede do coletivo
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O antagonismo entre ser acusado de "mamador das tetas do governo" e não ter "ao menos o aluguel da casa assegurado" fez o ator e produtor Rogério Mesquita chegar ao limite. "Eu abandonei a temporada da peça Interior na semana passada, tive um surto, achei que não estava mais dando conta. O cenário de incertezas mexe com o psicológico", desabafa o artista cearense, membro do Grupo Bagaceira de Teatro, um dos principais coletivos artísticos do Estado. Após 18 anos, a trajetória do Bagaceira pode estar acabando e é sobre fim que trata Inventário para poéticas futuras, montagem ainda em construção apresentada no formato "abertura de processo" nesta quarta-feira, às 19 horas, na Casa da Esquina.

 

A atual crise do Bagaceira já dura, pelo menos, dois anos e foi em meio a esse cenário de interrogações que o grupo teve projeto aprovado no Laboratório de Teatro da Escola Porto Iracema das Artes e começou a desenvolver o mais novo espetáculo. "Estávamos numa desmotivação absurda e tentamos fazer dessa possibilidade de fim um trabalho, nem que fosse o último do grupo. Para não ficar na lamúria, fomos fazer o que a gente acha que sabe fazer: teatro", costura o ator e diretor Yuri Yamamoto, cuja companhia possui 17 espetáculos no currículo e acumula os principais prêmios e editais Brasil afora.

 

Segundo Yuri, a busca por se experimentar enquanto teatro de grupo sempre norteou o trabalho do Bagaceira, modus operandi que vem se tornando difícil, pois a luta atual é por sobrevivência. "A gente se tem como um laboratório. Confiamos uns nos outros e não nos colocamos no lugar do cômodo. Somos inquietos", pondera.

 

Esse estado de ebulição permanente fez do Bagaceira grande e esse crescimento não tem implicações apenas positivas. "Por ter uma estrutura grande, o grupo demanda um apoio financeiro que, muitas vezes, as políticas dentro do Estado não abarcam e temos que buscar conseguir editais em nível de Brasil", pondera a atriz e iluminadora Tatiana Amorim, apontando como marco da queda de incentivo para a cultura o impeachment de Dilma Rousseff (PT). "Só sabemos como vamos nos manter até o fim de 2019, mas queremos nesse ano fazer da Casa da Esquina (sede do Bagaceira) um ponto de resistência política e de vida", sustenta, evidenciando o "perigo para a cultura" representado pela próxima gestão presidencial.

 

"Com o Ministério da Cultura acabando, a gente vislumbra um futuro ainda mais difícil e estamos encarando isso de frente, como um mote de criação", confronta o ator Ricardo Tabosa, salientando a metáfora da morte dentro de Inventário para poéticas futuras. "A gente parte da crise do grupo para falar de muitas mortes, reais e simbólicas. Tudo feito de modo bem cru. O processo ainda está em aberto, mas por enquanto está sendo pensado sem figurino, com luz natural, queremos manter uma proposta mais seca", antecipa.

 

Para Alexandre Dal Farra, tutor do Bagaceira no Porto Iracema e dramaturgo do novo trabalho, a sensação de morte vivida pelo grupo pode trazer à tona o novo. "O luto é esse sentimento ambíguo de ter de conviver com a morte e continuar indo em frente. Nesse momento, essa sensação é muito real também por razões políticas", afirma o artista paulista, destacando ser esse sentimento comum a muitos grupos Brasil afora. Alexandre defende estar o grupo cearense entre os destaques do País e lamenta que acabe não tendo acesso a editais de fomento restritos ao eixo Sudeste.

 

Apesar de todas as dificuldades, o ator e dramaturgo Rafael Martins celebra a  parceria com Alexandre e o momento delicado, porém frutífero do grupo. "Ele (Alexandre) pega as referências de cada um de nós e temos uma afinidade muito feliz". O cearense acentua o elemento da instabilidade como trampolim. "A crise tem sua força e o cansaço também. E não é só uma crise no grupo, é no País, no sistema. Como dar conta disso? Só através da arte. Os meios acadêmicos, com seu pensamento linear, ainda não estão dando conta", afirma, completando: "Estamos vivendo o nevoeiro. Não sabemos o dia de amanhã. Se vamos renascer ou como vamos renascer".

 

Inventário para poéticas futuras

Quando: Hoje, às 19 horas

Onde: Casa da Esquina (R. João Lobo Filho, 62 - Bairro de Fátima)

Programação Gratuita 

 

 

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