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Cidade, músicas e lembranças
Vida & Arte

Cidade, músicas e lembranças

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À memória de tempos bons

 

Na última quinta-feira à noite, marquei um encontro com a saudade. Não, nada daquilo de lamentar uma grande perda ou de desejar uma volta ao passado, mas de relembrar e curtir prazerosamente momentos especiais que vivi nesta Loura Desmemoriada do Sol, quando esta Cidade talvez fosse mais da gente. Aula finda, tomei um táxi e fui bater na Praça do Ferreira. O logradouro estava todo decorado com enfeites coloridos, a árvore de natal iluminada e, quais pingentes natalinos, pessoas em situação de rua. Claro que merendei caldo de cana com pastel na Leão do Sul, quase quebrando o molar com o caroço da solitária azeitona contida na guloseima. Crianças cantavam nas sacadas do velho hotel, talvez para nos lembrar de não perdermos as promoções das lojas.

 

Em meio a um burburinho, encontrei o Assis e a Christiane, casal amigo, na porta do Cineteatro São Luiz. Assim como eles, dei de cara com um grande número de amizades antigas, algumas há muito não vistas. O tempo não destrói as relações humanas verdadeiras; passam-se décadas sem que se veja alguém e quando o encontramos é como se tivéssemos topado com ele no dia anterior. Ali, naquela hora, parecíamos fazer parte de uma estranha confraria, uma sociedade secreta, disposta a cumprir um sagrado ritual. E nada mais era do que a pura verdade: estávamos reunidos naquele local para reouvir as músicas do disco Maraponga, obra-prima composta pelo Ricardo Bezerra há 40 anos. Bálsamo para os nossos pobres ouvidos, obstruídos com lixo musical.

 

A beleza do interior da casa de espetáculos é uma promessa de felicidade que, como se verá, se cumpriu. Sentado na fila do gargarejo, olhei para trás. Um mar de cabeças brancas inundava a platéia. Gaitadas cúmplices, apertos de mão, abraços fortes, acenos alegres, gente que não se via há uma eternidade e que agora se revia feliz. A cortina se abriu e as lembranças ganharam os ares. Mona, Mimi, Nélio, Tito e outras feras musicais da Orquestra Popular do Nordeste nos botaram na roda daquelas belas canções que nos fizeram rir, chorar e recordar. A casa no bairro distante, um arrozal que ia dar na lagoa, o piano na sala, o povo entrando e saindo, Alano, Amelinha, Bel, Bete, Brandão, Ednardo, Fausto, Petrúcio, Rodger, Stélio, Téti. O Ricardo Bezerra era só risos.

 

Fagner adentrou o palco com seu violão e cantou Cavalo Ferro e Manera Fru-

Fru com seu parceiro. Alguns mais radicais até ensaiaram uma vaia por motivo das recentes manifestações políticas do grande artista, abortada face à relevância da homenagem que ali se prestava. Show terminado, aplausos mil, fui de carona ao bar. No caminho, dei tratos à bola, ruminando a doce-amarga palavra saudade. Aquele repertório me transportou à Praia de Iracema, àquelas tantas madrugadas insones entre conversas, copos e fumaças, a uma cidade que singrávamos com nosso destemido barco boêmio, que era recebido com carinho em cada porto seu. "Mas terei recordações desta noite também", disse eu, "A saudade é a prova de que valeu a pena". O carro seguia na noite veloz...

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