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As mil faces da Monstra
Vida & Arte

As mil faces da Monstra

Em um encontro com Monstra, o Vida&Arte apresenta a trajetória múltipla, combativa e repleta de possibilidades da artista
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A vida da Monstra é marcada por descontinuidades. É com isso em mente que, enquanto espero a chegada dela para uma entrevista, penso: que Monstra encontrarei hoje? Será simples, discreta e sensível como a pessoa de pele ainda sem tatuagens que conheci cinco anos atrás na Universidade Federal do Ceará (UFC)? Ou será majestosa e potente como a que subiu ao palco do recém-inaugurado Teatro São José durante a abertura da Bienal Internacional da Dança e entoou o poderoso sermão às vésperas do segundo turno das eleições: "Eles não são perigosos! Nós somos o perigo! Porque nós somos a revolução! E nós somos o futuro desse mundo!".

 

"A Monstra depende de para quem você está fazendo essa pergunta", resume ela quando abre sua história para esta reportagem. "Eu consigo entender tudo que vivi, mas sou uma pessoa fragmentada. Para as pessoas que vão para o Carnaval no Inferno existe aquela Monstra puxando o bloco com o microfone na mão. Para as pessoas que vão para as festas que eu organizo existe a Monstra que está lá tocando as músicas; existe a Monstra nos palcos atuando; existe a Monstra que está começando a dar aula de teatro; existe a Monstra que está aos trancos e barrancos aprendendo a se relacionar; existe a Monstra que só a minha avó conhece?"

 

Esta descontinuidade começou ainda cedo. Quando criança, morou em vários lugares, sempre acompanhada da mãe e, constantemente, da avó e do irmão, 10 anos mais jovem. Na vida escolar, passou pelo Colégio Militar dos Bombeiros, Colégio Tiradentes e Colégio Dom Quintino, enfrentando, desde então, embates de aceitação nas suas relações. "E sempre fui essa pessoa meio estranha. O que é ótimo hoje em dia, mas na época do colégio não era".

As questões sobre o gênero também surgiram cedo, apesar de ainda percebidas de forma lúdica. Hoje, se identificando como uma pessoa trans, ela lembra que, por volta dos oito ou nove anos, já gostava de brincar com um vestido amarelo com degradê laranja, quando a mãe saía de casa. "Eu usava e me sentia linda. Ficava andando dentro de casa, maravilhosa, e pensava: 'ela vai fazer várias compras, vai demorar' ou 'hoje ela volta logo, tem que ser mais rápido'".

 

Terminou cedo o ensino básico e aos 16 anos ingressou no Curso de Jornalismo da UFC, no mesmo período em que foi forçada a sair de casa por conta das brigas com a mãe. Foi durante o Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação de 2016, edição sediada em Fortaleza, que a artista apresentou uma performance divisora de águas em seu trajeto. "A Monstra, em si, nasceu naquele palco", lembra, pontuando ainda que já havia se apresentado como drag queen outras vezes, sob o título de Stella Candy (Stella é Estrela em italiano, um dos sobrenomes que constam em seu nome de registro que, hoje, não usa mais e nem divulga qual era).

 

Na performance, subiu ao palco usando apenas roupas íntimas e um saco preto na cabeça encobrindo o rosto cheio de feridas, feitas com maquiagem, e que só seria revelado ao final. Enquanto ficava imóvel, uma série de áudios trazia relatos jornalísticos de LGBTFobia, seguidos de um trecho do monólogo Gota D'água, peça de Chico Buarque e Paulo Pontes. "Esse texto fala muito sobre uma força que cresce, esse mar que vai se ressaqueando e tomando força", conta. "Essa ressaca, que parece um movimento de retrocesso, é na verdade um processo de recolhimento e armazenamento de forças. Eu entendi que eu podia achar forças dentro dos meus processos de recolhimento e tinha forças para ser uma onda solta".

 

A partir dali, a arte entrava definitivamente em sua vida. O ingresso no Curso de Princípios Básicos do Theatro José de Alencar resultou no espetáculo Trinta e Duas, que estreou em setembro de 2017, a primeira vez em que assinaria somente com o nome Monstra, deixando de lado a performance drag e assumindo um novo trajeto. "Eu entendi que o meu caminho é dentro da arte", diz, ressaltando a forma como a área abraçou as suas multifuncionalidades. "A arte foi o primeiro lugar que eu me senti confortável para fazer maquiagem, festa, figurino, direção, tudo ao mesmo tempo. Na arte eu posso fazer tudo".

 

Desde então, Monstra vem desenvolvendo as suas muitas faces na sua atuação na vida e na cultura da Cidade. Com maquiagem, além dos muitos ensaios fotográficos, trabalhou no videoclipe Balneabilidade Livre, da cantora Ilya, e no curta Espavento, que será lançado no primeiro semestre de 2019. Nas artes cênicas, além de Trinta e Duas, a artista foi assistente de direção de Re-talho e já participou duas vezes da Bienal Internacional da Dança. 

 

Promove, frequentemente, festas como Carnaval no Inferno; Acredita em Si Mesma, Bixa!; As Tigresas Carecas; Reggae das Monstras; Piloura Monstra; Noite de Climão, e vai viajar, ainda neste ano, para Belém para participar da festa Pool Ta Que Party You.

 

"Eu tento ter uma experiência de vida que seja o mais verdadeira com o que eu quero ser e não o que as pessoas esperam", reforça. "Por mais que seja difícil, se não for por esse caminho, pra mim é a morte. A morte de quem eu sou, mesmo que simbolicamente. Hoje, eu aceito que é possível que eu morra, mas eu não aceito mais passar por mortes simbólicas".

 

A cena artística, apesar ser mais aberta às pessoas dissidentes, também é um campo de disputa para Monstra. Segundo conta, circuitos mais tradicionais ainda não estão prontos para a diversidade, o que transparece quando ela ouve questões como "tá, Monstra, mas como é mesmo o teu nome?". Ela protesta: "cheguei a um ponto em que, se as pessoas não vão respeitar meu trabalho o suficiente para entender minha identidade, é problema delas. Todos os meus trabalhos artísticos eu assino como Monstra".

 

Quando, por fim, encerramos a entrevista, decidi acompanhá-la de bicicleta até o The Lights, bar onde Monstra faria uma festa naquela noite. No caminho, paramos no sinal ao lado de um homem que dirigia uma caminhonete. Pela janela, com o vidro fechado, percebe-se a expressão de reprovação dele. Ela revida, com resistência, sustentando olhar ameaçador. O sinal abre e seguimos, enquanto eu entendo o que tinha ouvido mais cedo: "a minha existência sempre entra em conflito com as regras da sociedade. Se eu vou entrar no embate, ou não, depende do meu humor. Mas eu tenho motivo para pegar briga todo dia".

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