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Visão dos gigantes
Vida & Arte

Visão dos gigantes

Os produtores e diretores Zelito Viana e Luiz Carlos Barreto relembram as raízes cearenses, a atuação fundamental para o audiovisual no século XX e refletem sobre questões atuais do cinema brasileiro
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A história do cinema brasileiro passa pelo Ceará muito por causa de dois nomes gigantes: Luiz Carlos Barreto e Zelito Viana, que completaram, em 2018, 90 e 80 anos respectivamente. Atuantes na produção de clássicos da cinematografia nacional, eles foram relevantes na construção do chamado Cinema Novo. Instalados há décadas fora do Estado, os cineastas atenderam ao pedido do Vida&Arte; de fazer um apanhado de memórias, vivências e opiniões sobre suas vidas, atuações profissionais e o cinema nacional. Além das perguntas da reportagem, convidamos nomes do audiovisual cearense a também mandarem questionamentos aos entrevistados.

 

O POVO - Os senhores nasceram no Ceará, mas se mudaram cedo para o Rio de Janeiro - Zelito ainda criança, Luiz Carlos jovem adulto. Que memórias têm da época? O que guardam de cearenses?

Luiz Carlos Barreto - Viajei para o Rio em 1947 logo no pós-guerra, quando mal completara 17 anos, deixando para trás uma vida da qual sinto muitas saudades até hoje: as retretas das quartas-feiras na Praça da Lagoinha, das tertúlias nas noites de luar no Ideal Clube, os jogos no Estádio Getúlio Vargas do meu time 24 de Maio contra o arquirrival Gentilândia F.C. Saudade dos banhos de mar nas águas mornas da Praia de Iracema; das férias escolares passadas na pequena Vila do Uruquê, no Sertão central, ouvindo as histórias contadas pelo Luiz Vaqueiro, mestre daquelas paragens; saudade das festas de São João na fazenda Normal regadas a aluá e muito milho verde e pamonhas. Essas saudades que mantenho como um acervo precioso da minha identidade nordestina.

Zelito Viana - Memória da época não tenho pois saí aos 4 anos de idade. Do Ceará guardo muitas coisas, pois fui criado no Rio de Janeiro, mas numa casa 100% cearense. Durmo em rede, como cuscuz com leite, adoro tapioca e baião de dois.

O POVO - Como chegaram à área audiovisual? Como era produzir em uma época de ditadura, Cinema Novo, Glauber Rocha (cineasta)?

Luiz Carlos Barreto - Foi uma fase muito rica e fértil em criatividade artística e muita sabedoria política para enfrentar a repressão da Ditadura Militar. Não podemos esquecer que os melhores filmes brasileiros foram produzidos durante aqueles anos de chumbo: Vidas Secas, Memórias do Cárcere, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, Macunaíma, Pra Frente Brasil, Lúcio Flávio, Xica da Silva, Dona Flor e Seus Dois Maridos, São Bernardo e tantos outros.

Zelito Viana - Cheguei pelas mãos de Leon Hirszmann (cineasta) que era meu colega na Escola de Engenharia, no Largo de São Francisco, no Rio de Janeiro. Quando entrei para o cinema, ele estava numa crise industrial com o fim da chanchada. Neste vazio apareceu o Cinema Novo. Produzíamos filmes de forma muito amadora nos dois sentidos do termo. Produzíamos com muito amor filmes que, acreditávamos, iriam transformar nossa realidade e criar um País melhor. Glauber Rocha é um exemplo deste movimento.

O POVO - Os senhores foram importantes agentes na história do cinema brasileiro. Traçando paralelos, como avaliam esse percurso até chegar no atual momento?

Luiz Carlos Barreto - Não tenho a menor dúvida de que construímos algo de muito importante como resultado do Movimento do Cinema Novo. Tão ou mais importante que a Semana de Arte Moderna dos anos 1920.

Zelito Viana - Como dizia Nelson Pereira dos Santos o cinema brasileiro vive de "golfadas". Tivemos a Vera Cruz, a chanchada. O Cinema Novo, a Embrafilme, a retomada, a renúncia fiscal, e hoje vivem do Fundo Setorial. O que tem em comum a todas as "golfadas" é que vivem num mercado inteiramente dominado pelo produto estrangeiro. O nosso cinema sempre foi marginal no nosso mercado e, com exceção da época da chanchada, vive das migalhas do Estado que nunca teve uma atuação estrutural que fosse capaz de mudar as condições de competitividade do nosso produto no nosso mercado.

O POVO - Em uma época de crescente multiplicidade e pulverização das janelas e plataformas de exibição, quais são os principais desafios para os cineastas brasileiros no que tange à inserção e veiculação de suas produções?

Luiz Carlos Barreto - Nestes últimos cinco anos, o processo cinematográfico entrou em recessão no que diz respeito a presença dos nossos filmes no mercado interno. A taxa de ocupação do mercado pela produção de filmes brasileiros que chegou a atingir 38% caiu, nos dias atuais, para menos de 10%. A convergência tecnológica causando a multiplicação das mídias e plataformas reduziu a capacidade da Ancine de regulação e fiscalização do mercado. O sistema VOD (video on demand) está instalado no Brasil há mais de 5 anos e ainda está se discutindo como regular esse segmento do mercado.

Zelito Viana - O nosso desafio é adequar nosso produto aos diversos formatos e janelas a disposição. Fazer um documentário para o cinema é diferente de fazê-lo para a Globo News ou para o National Geographic. Um produto da internet não tem nada a ver com um produto da TV aberta e assim por diante. Uma reciclagem nos profissionais é fundamental para o êxito de uma empresa produtora.

Vocês são de uma geração que criou o Cinema Moderno brasileiro, ao mesmo tempo em que exerceram forte militância no campo das políticas do audiovisual no País. Grande parte das conquistas contemporâneas, como o Fundo Setorial do Audiovisual, são resultado disso. Como vocês analisam a repercussão destas políticas para o desenvolvimento do campo audiovisual? No contexto político nacional, como analisam a relação cultura x Estado?

Luiz Carlos Barreto - Não tenho a menor dúvida que todos os mecanismos de fomento e estímulos ao desenvolvimento e implementação de uma forte e vigorosa indústria cinematográfica e audiovisual são decorrentes da repercussão e do prestígio conquistados pelos nossos filmes aqui e no resto mundo. O objetivo do grupo do Cinema Novo foi realizar filmes radicalmente brasileiros, retratando toda nossa rica diversidade cultural e com isto ganhar competitividade em face dos filmes internacionais que sempre dominaram nosso mercado. Todo este trabalho está sendo desconstruído, ou melhor, destruído. Mas o Cinema Brasileiro já resistiu e ultrapassou outras crises até mais graves que esta. Exemplo mais recente foi o período Collor que tentou nos exterminar e não conseguiu.

Zelito Viana - O FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) pode vir a ser a grande oportunidade para que consigamos finalmente ter uma maior presença no mercado audiovisual brasileiro. O dinheiro existe, a forma de aplicar este dinheiro de volta na atividade é que ainda não foi encontrada. Esta é a tarefa para as novas gerações que entram aos borbotões no mercado audiovisual brasileiro a cada minuto.

Diante do atual cenário brasileiro, qual a percepção dos senhores sobre a nova política imposta pela Ancine de notas aos diretores como critério definidor na aprovação de novos projetos e qual a opinião sobre essa imposição que afeta, diretamente, o surgimento de novos primeiros longas por realizadores que vêm experimentando a linguagem através do curta?

Luiz Carlos Barreto - Atribuir notas para qualificar diretores de cinema é ideia de jerico e revela o quanto de amadorismo está infiltrado no ambiente das instituições do Estado Brasileiro.

Zelito Viana - Como dito acima é apenas uma tentativa de regulamentar uma parte do uso do dinheiro do FSA que deverá contemplar outras atividades importantes do setor como restauração de filmes, preservação da memória do cinema brasileiro, formação de mão de obra especializada, estímulo a utilização de novas tecnologias, estímulo a exibição de produtos brasileiros e muitas outras que hoje estão marginalizadas nos critérios de aplicação de recursos do FSA.

O POVO - Como os senhores acompanham o cinema brasileiro feito na última década? O que chama a atenção nessa produção recente?

Luiz Carlos Barreto - O que me alegra é ver o aparecimento de uma geração de diretores de grande talento entre os quais destaco, sem desmerecer tantos outros, o Fellipe Barbosa, cujos três primeiros filmes - Casa Grande, Gabriel e a Montanha e Domingo - são uma lufada de vento renovador.

Zelito Viana - A diversidade. A liberdade de criação e a preocupação de criar uma linguagem brasileira. Ainda não chegamos lá, mas o caminho é esse. Muita quantidade, muita diversidade e muita liberdade. Se mantivermos essa batida muito breve estaremos novamente arrebentando as telas dos festivais internacionais e teremos produtos brasileiros nas telinhas de todo o planeta.

LUIZ CARLOS BARRETO

Sobralense nascido em 28 de maio de 1928, é um dos principais produtores do cinema brasileiro. Trabalhou com cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade e Cacá Diegues. A estreia no audiovisual foi com o roteiro de O Assalto ao Trem Pagador. Produziu, entre dezenas de outros, Vidas Secas, Terra em Transe (também atuando na fotografia de ambos), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Dona Flor e Seus Dois Maridos, A Dama do Lotação, Bye Bye Brasil, os indicados ao Oscar O Quatrilho e O Que É Isso Companheiro? e, mais recentemente, João, o Maestro. É pai dos cineastas Fábio e Bruno Barreto.

Zelito Viana

Fortalezense nascido em 5 de maio de 1938, é diretor e produtor de dezenas de filmes. Irmão de Chico Anysio, Zelito viajou ainda pequeno para o Rio de Janeiro. Na década de 1960, fundou com Glauber Rocha a produtora Mapa Filmes, que produziu longas como Terra em Transe, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Menino de Engenho, Cabeças Cortadas, Quando o Carnaval Chegar e Cabra Marcado Para Morrer. Como diretor, trabalhou em Os Condenados, Morte e Vida Severina, Avaeté - Semente da Vingança, Villa-Lobos - Uma Vida de Paixão e Bela Noite Para Voar. É pai da cineasta Betse de Paula e do ator Marcos Palmeira.

 

 

 

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