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Fronteiras literárias
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Fronteiras literárias

| ENSAIO | Gênero textual situado entre o rigor formal conceitual e a liberdade artística literária, o ensaio ganha cada vez mais espaço no mercado editorial brasileiro
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Escrever é habitar fronteiras. Entre os códigos e princípios estabelecidos do trabalho acadêmico e os dois dedos de prosa despreocupados da crônica cotidiana, um gênero textual se destaca na universidade e no mercado editorial por sua hibridez: o ensaio.

 

O filósofo e humanista francês Michel Eyquem Montaigne (1533-1592), é considerado o pai do ensaio enquanto gênero literário. Seus Ensaios, publicados entre 1580 e 1588, o tornaram famoso e inauguraram uma escrita caracterizada pela soltura do pensamento, repleta de digressões. Em um fôlego só, sem parágrafos e abusando de dois-pontos e pontos e vírgulas, Montaigne escreveu sobre uma ampla variedade de temas - das mazelas da vida privada, como suas crises renais e paixões malfadadas, ao encontro que ele teve com índios da tribo Tupinambá que foram levados das costas brasileiras para serem cruelmente exibidos na corte francesa. Seus esboços sobre a condição humana ainda são atuais.

[SAIBAMAIS] 

Já no início do século XX, a premissa do ensaio como um gênero de escrita pessoal foi repensada teoricamente por dois filósofos, o húngaro György Lukács e o alemão Theodor Adorno. Professora de teorias literárias do Departamento de Literatura da UFC, Irenísia Oliveira explica que o ensaio é um lugar movediço entre o rigor formal conceitual e o flerte com a liberdade literária. "A questão abordada pelos pesquisadores era se o ensaio se caracterizava como um gênero literário ou se seria um gênero que poderia se prestar à finalidade do conhecimento, da ciência. Qual seria aí o lugar do ensaio: ele é arte ou ele é ciência?

 

Adorno fala que o ensaio se prestaria a uma abordagem muito mais maleável, mais flexível, que podia se adaptar aos movimentos do seu objeto. Sendo assim, o ensaio permitia ao ensaísta definir a própria forma de exposição. Você tem mais liberdade para perseguir os movimentos desse objeto na experiência, liberdade de se aproximar, compreender, sentir, perceber, melhorar as nossas formas de percepções e conhecimentos do mundo. O ensaio tem essa fluidez de se aproximar do conhecimento artístico e, ao mesmo tempo, está obrigado ao trabalho do conceito. Ele não pode fugir", explica Irenísia.

 

A recusa em se deixar cristalizar coloca o ensaio à margem, como um gênero aberto e lacunar por autodenominação. É nesse lugar transitório entre literatura e academia que mora toda a grandeza do texto ensaístico. "Para Luckás, o ensaio é um exercício de ir tateando O ensaio é uma espécie de busca: você não tem o ponto de chegada determinado. Eu diria que o ensaio é forma não convencional de conhecimento, mas ele tem o compromisso de produzir conhecimento novo, relevante, comprometido inclusive com a busca de transformação do mundo. É uma coisa muito séria, como é a arte e como é a ciência", pondera Irenísia Oliveira.

 

Para testar a flexibilidade do texto ensaístico, o escritor Marcelino Freire se joga na escrita do que intitula "ensaios de ficção". Com a flexibilidade de uma cama elástica, o gênero o recebe generosamente. Autor de livros consagrados pela crítica como Angu de Sangue (2000) e Contos Negreiros (2003), o pernambucano lançou neste mês sua nova obra, Bagageiro - que chegou às livrarias pela editora José Olympio, do Grupo Editorial Record. "Eu nunca chamo meus contos de contos. Chamo de cantos, ladainhas, cirandas. Agora, resolvi chamá-los de 'ensaios de ficção'. A ideia veio a partir de uma frase que eu havia anotado: 'Hoje, todo mundo quer ter ração'. É um mordendo o outro, soltando os cachorros. Por isso resolvi posar de entendido, mas é só pose. Ironizo essa posição do 'saber' porque só sei que nada sei. O livro é um livro de contos, mas disfarçados de ensaios. Ou vice-versa. No livro, coleciono histórias, causos, dicas de escrita, de reescrita, tudo misturado a minicontos, piadas, sujidades outras. Detesto me colocar em um pedestal. Lá, entre um 'ensaio' e outro, tem sempre algo que desdiz as minhas próprias regras. Eu mesmo me contradigo o tempo inteiro", provoca o passional Marcelino. O trabalho é uma coletânea de pequenas historietas entremeadas por comentários sobre a escrita, o País, o mundo. "No 'bagageiro' da bicicleta a gente leva tudo: botijão de gás, criança, saco de batatas. Este livro é uma viagem! Eta danado!", ri-se o autor.

 

Além da José Olympio, outras casas editoriais têm incluído textos ensaísticos em seus catálogos nos últimos anos, como é o caso das editoras Letramento, 34, Todavia, Carambaia, Pensamento-Cultrix, Perspectiva, Companhia das Letras e Autêntica. O Grupo Autêntica, aliás, foi responsável pela publicação brasileira do aclamado Argonautas, vencedor do National Book Critics Circle Award em 2015 e escolhido como um dos livros do ano pelo The New York Times. A obra da ensaísta americana Maggie Nelson passeia pelo relacionamento da autora com o artista Harry Dodge, uma pessoa de gênero fluido. Em um relato intenso, Maggie subverte os cânones autobiográficos clássicos e costura uma "autoteoria" sobre as alegrias e complexidades de construir uma família queer em uma sociedade heteronormativa.

 

Fundadora do Grupo Autêntica, a diretora-executiva Rejane Dias não vê na crescente publicação de textos ensaísticos no País uma tendência de mercado, mas sim a consolidação de um vínculo entre o ramo editorial e o público acadêmico. "Está no DNA do Grupo Autêntica a publicação de ensaios. Digamos que os primeiros 500 ou 600 títulos da editora, que hoje já conta com pouco mais de 1.400, já eram do gênero. Para o ano que vem, temos previstos cerca de 40 livros para o selo Autêntica e mais da metade também são ensaios. Quando criei a editora em 1997 era muito claro, para mim, que a universidade é o lugar no Brasil onde se produz conhecimento e a maneira que eu tinha de conseguir bons textos era me aproximando da academia", explica.

 

Em 2019 o selo Autêntica lançará uma coleção de textos e ensaios sobre feminismo. A previsão é que o grupo publique obras internacionalmente reconhecidas como Sister Outsider, da Audre Lorde; e A Mente Hétero, de Monique Wittig.

 

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