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A palavra resiste
Vida & Arte

A palavra resiste

| análise | Romances e contos oferecem amplo panorama da literatura como resistência a regimes de força e tentativas de cercear as liberdades
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Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Margaret Atwood, Marcelo Rubens Paiva, Cesare Pavese, Bernardo Kucinski. A lista é longa e serpenteia por gostos, gêneros, épocas e línguas. Contos, quadrinhos, romances, ensaios biográficos, novelas.

[SAIBAMAIS] 

Comum a todos, a literatura como antídoto contra o autoritarismo e as tiranias. A figuração do literário como resistência. Ou, nas palavras do crítico Alfredo Bosi, autor do clássico Dialética da colonização: "Não nos cabe senão compreender resistindo e resistir compreendendo".

 

Das distopias clássicas (Laranja mecânica) aos relatos memorialísticos (Memórias do cárcere), a literatura de resistência transpõe para a linguagem as tensões sociais. Seja na forma dos cerceamentos às liberdades típicos dos regimes totalitários, e nisso há uma extensa tradição literária anti-stalinista, como em Doutor Jivago; seja nas obras que antecipam regimes de força e o predomínio de grupos opressores, como em O conto da Aia, de Atwood.

 

Há entre nesse percurso literário uma força-motriz que parte do ambiente político mais imediato e o transcende, sem perder de vista o nexo com o real.

Assim, George Orwell e Aldous Huxley, para ficar com apenas dois "distopistas", projetam sociedades cuja marca é a do extremismo futurológico. Ao expandir esse universo, criam pontos de exacerbação nos quais se evidenciam os ataques aos valores iluministas.

 

O ponto de saída dos autores de 1984 e Admirável mundo novo, porém, é o clima de acirramento e ameaça que os regimes governamentais contemporâneos às obras pressagiam.

 

Nem sempre, porém, essa elaboração da linguagem como resistência se apresenta de modo dual, com a ameaça totalitária expressa na figura de um ente de estado ou de uma tecnologia em torno da qual se concentra o controle.

 

Em O senhor das moscas, de William Golding, o exercício da tirania é uma extensão da própria coletividade. No livro, um grupo de crianças precisa sobreviver numa ilha após um naufrágio. Na obra, Golding coloca em choque duas linhas: uma progressista, para usar um léxico atual, e outra autoritária. É como se dissesse: in natura, no estado de barbárie, o homem volta a ser lobo do homem. O livro, portanto, funciona como um libelo humanista.

 

De maneira distinta, Franz Kafka (O castelo e O processo) tematiza a ameaça de um poder incontrolável fundado na autoridade sem nome. Ora pelo estado, ora pela família, o indivíduo é constantemente acossado por forças fantasmagóricas sem que encontre guarida nas normas que deveriam protegê-lo.

 

A lei, o governo, o chefe de polícia - nenhuma dessas instâncias é confiável. 

 

Quase todo o trabalho do escritor tcheco é uma tentativa de mostrar o avesso de estruturas cujo papel seria o de salvaguarda da liberdade, mas acabam por subverter esse função.

 

No Brasil, a literatura mais recente voltou a explorar os anos ditatoriais, que  vão de 1964 a 1985. Autor de K, relato de uma busca, o premiado escritor Bernardo Kucinski opera com o registro da memória dos desaparecidos. Na obra, a ferida do esquecimento é eviscerada à medida que a trama se encaminha para o final.

 

Outro escritor brasileiro, Julián Fuks, também se debruçou sobre o assunto, mas sob viés diferente. Em A resistência, romance publicado dois anos atrás, a ditadura argentina e a fuga dos pais para terras brasileiras ganham tratamento de uma epopeia familiar. Autobiográfico, o livro fabula, todavia, os mecanismos de construção da memória.

 

Além da literatura, os relatos híbridos da vencedora do Nobel Svtlana Alexsiévitch formam, no todo, um amplo painel de camadas sociais que resistiram às mais diversas formas de extremismo no curso do século passado.

 

Mulheres na guerra, crianças em meio a escombros, os sobreviventes de uma catástrofe nuclear, as histórias de gente comum na débâcle da União Soviética: são algumas das narrativas da escritora ucraniana cuja escrita reinventa a oralidade.

 

Procedimento semelhante é adotado pelo escritor Primo Levi. Em É isto um homem?, o autor italiano narra cruamente a rotina e o progressivo processo de desumanização em um campo de concentração nazista, tema já antecipado pelo escritor russo Varlam Chalámov em Contos de Kolimá.

 

Preso e condenado a rotinas extenuantes de trabalho forçado pelo regime soviético, Chalámov tinha uma preocupação eminentemente documental. A ele interessava sobretudo documentar a resistência e a sobrevivência, afastando tudo que fosse literário e se aproximando do que ele chamava de "prosa real".

 

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