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Carinho na Decadência
Vida & Arte

Carinho na Decadência

| Crítica | Filme com elenco formado pelo Grupo Bagaceira tem estreia nacional no Festival de Brasília. Obra conquista ao apresentar história de amor em ambiente onírico
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Inferninho não apela ao racional. O longa, dirigido por Guto Parente e Pedro Diógenes, faz ponte direta com as sensações do espectador e, escapando de uma leitura realista, se ancora no universo onírico. É como uma história de amor sonhada numa noite turbulenta. O filme tem como ambiência um bar decadente localizado num não-lugar que tem muito do Ceará, apesar de se apresentar desterritorializado. Após construir carreira bem sucedida em festivais mundo afora, o projeto do Grupo Bagaceira de Teatro acaba de ter estreia nacional na programação do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, mais antigo evento do segmento do País e um dos mais relevantes da América Latina.

 

Quem conduz a narrativa é Deusimar, a dona do bar. Vivida com precisão e sutileza por Yuri Yamamoto, a personagem herdou o estabelecimento da mãe, mas alimenta o desejo de abandonar o lugar e se descobrir em outras paisagens. A protagonista é complexa, equilibra crueldade e certa pureza infantil, e foi desenvolvida pelo ator cearense com beleza, vigor e um patente impulso de explosão. Entre calmaria e descompasso, Deusimar é síntese perfeita de Inferninho. Ela leva os dias ao lado dos funcionários do local: um inusitado e carismático coelho (vivido por Rafael Martins), uma cantora pouco talentosa e muito provocativa (Samya de Lavor), uma espécie de segurança às avessas (Tatiana Amorim) e um pianista aparentemente alheio ao mundo circundante (Paulo Ess).

 

Os dias são todos parecidos nesse bar (meio esconderijo, meio prisão) até que o marinheiro Jarbas (Démick Lopes) aparece como um sopro de outros ares. Deusimar se apaixona e os dois vivem um romance pautado em opostos. Ela quer ir embora, ele deseja ficar, criar raízes. Como pano de fundo desse amor, músicas da forrozeira Rita de Cássia capazes de evocar os sentimentos mais piegas guardados em nós. Nas palavras de Guto, ditas na apresentação em Brasília, a essência do longa é: uma história de amor nos seus moldes mais românticos - porém apresentada longe dos cânones.

 

A produção é um bonito encontro entre cinema e teatro, numa relação borrada entre linguagens. O cenário, as atuações, os diálogos; tudo remete às artes cênicas, num jogo entre o drama e a comédia. Os clientes do bar são exemplo desse cativante estranhamento. Entre mesas e cadeiras desgastadas estão personagens como um Mickey triste (Ricardo Tabosa) e um Wolverine de garras improvisadas (Rogério Mesquita). Esses clientes estão ali em versões hiperbólicas dos tipos que encontramos nos bares do centro de Fortaleza.

 

Mesmo apostando na universalidade, a narrativa incorpora vivências muito presentes na vida do povo cearense. Um exemplo é a desapropriação do imóvel do bar que é imposta a esses personagens, pois o progresso vai chegar por meio de um centro de entretenimento chamado "The Virtuarium" e, por isso, aquela moradora recebe pressão para sair dali. A situação é recorrente na nossa trajetória (que o diga a peleja de comunidades como o Poço da Draga em contraste com a megalomania de um Acquario Ceará). O filme tem também certo "complexo de Iracema", a história da mulher que espera o homem estrangeiro chegar.

 

Inferninho conquista justamente ao apresentar situações corriqueiras através de outros símbolos. É difícil não se identificar com os personagens, a despeito de todo estranhamento. Prova disso é o coelho vivido por Rafael Martins, ele consegue fazer rir e chorar sem que a fantasia exagerada o distancie de quem assiste. A produção, que vai estrear no Ceará na programação do 12º For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual em novembro, deve conquistar diferentes públicos, mesmo aqueles pouco acostumados a um cinema menos mainstream. O amor idealizado e os sonhos malucos estão sempre nos pairando de alguma maneira e o filme soube captar isso com profundidade e leveza.

 

O jornalista viajou a convite do Festival de Brasília

 

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