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Apaixonada e violenta
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Apaixonada e violenta

| CANGAÇO | Jornalista Adriana Negreiros lança biografia de Maria Bonita e revela detalhes da história da primeira mulher a integrar o bando de Lampião
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A figura de Maria Bonita estampa camisetas, bolsas, cadernos, toalhas. Seu nome batiza restaurantes, bares, botecos, motéis, lojas, salões de beleza. A cangaceira avançou pelas décadas e se tornou tão conhecida quanto Lampião, líder do bando e dono de seu corpo e alma. Dono porque ela permitiu, porque escolheu ser salva pelo príncipe-bandido que andava a varrer os sertões. Antes disso, Maria escapulia do marido mulherengo e fugia para os forrós do
interior baiano.

 

A jornalista Adriana Negreiros estava interessada nas contradições da cangaceira quando começou a escrever Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço, livro que chega às livraria esta semana, pelo selo Objetiva, da Companhia das Letras. Na entrevista a seguir, Adriana narra as surpresas que encontrou durante a investigação e revela o fascínio exercido por Maria Bonita em Lampião, nos outros membros do bando e na imprensa nacional.

 

O POVO - De onde surgiu seu interesse pelo cangaço?

Adriana Negreiros - Minha família é toda de Mossoró, e minha avó, assim como todos os mossoroenses, vivia contando essas histórias, com todo orgulho. Sempre vi no Lampião uma figura meio cômica. Foi mais ou menos em 2013 que comecei a me contaminar (no bom sentido) pelo feminismo. Vi que era uma história que podia ser contada por uma perspectiva não tradicional, a partir das mulheres. A história é sempre contada do ponto de vista do homem branco ocidental, e eu quis fazer uma escolha política.

 

O POVO - Então teve a ver com essa sua descoberta do feminismo?

Adriana Negreiros -Totalmente. Todo o processo. Desde que comecei a escrever o livro, até hoje, as duas coisas foram caminhando juntas.

 

O POVO - Em que se basearam suas pesquisas? Pode me contar um pouco desse processo de investigação?

Adriana Negreiros - Foi uma grande dificuldade que tive. Havia poucas informações sobre as mulheres. Muitas são conflitantes. Usei muitos jornais da época, fiz uma larga consulta aos jornais dos anos 1920 e 1930. Li praticamente todos os livros escritos sobre cangaço. E também os depoimentos que esses cangaceiros deixaram em vídeo.

 

O POVO - Você partiu de um olhar leigo e mergulhou em uma investigação sobre o cangaço. Se surpreendeu ou encontrou exatamente o que esperava encontrar?

Adriana Negreiros - Fiquei muito surpresa, porque não tinha a dimensão de como a história do cangaço era violenta. Eu sabia que havia muita violência, sim, mas não tinha a exata dimensão do quão bárbara havia sido aquela experiência, sobretudo em relação às mulheres. Ainda tinha, quando comecei a pesquisar, uma visão mistificada das cangaceiras, ainda as via como combatentes, guerreiras. Hoje, vejo que é uma ideia completamente inadequada, porque as mulheres não faziam isso, não pegavam em armas. Tinham uma atuação mais doméstica. Mas o que mais me surpreendeu foi perceber como a história dessas mulheres sempre foi silenciada e como elas tiveram seus discursos desqualificados e relativizados. Muitas mulheres entraram no cangaço porque quiseram, como Maria Bonita, mas muitas entraram à força. No sertão dos anos 1930, era muito comum que um cangaceiro passasse por um lugar e pegasse uma menina pra ele. E elas contavam isso e recebiam um total descrédito. É o caso da Dadá. Tinha 12 anos, brincava de boneca no sertão da Bahia. Seu pai teve um conflito com Corisco e Dadá foi pega como forma de vingança, quase como um pagamento. Foi colocada no lombo de um burro, levada para o meio do mato e estuprada violentamente. Teve uma hemorragia que durou vários dias, quase morreu. E quando ela conta isso, as pessoas não acreditam, dizem "ah, não foi bem assim", dizem que "no fundo ela queria". Isso me surpreendeu, ver como as mulheres que contam sobre violência são desqualificadas
e desacreditadas.

 

O POVO - Por que elas foram historicamente desqualificadas e desacreditadas?

Adriana Negreiros - Pelo machismo. Sempre tiveram seus papéis inferiorizados. É a questão atávica de transferir para a mulher a culpa da violência que ela sofre.

 

O POVO - O imaginário popular fala da mulher entre os séculos XIX e XX quase sempre como donzelas que precisam ser salvas, vítimas dos caprichos masculinos. Maria Bonita e as cangaceiras subvertem essa representação ou, antes, a reafirmam?

Adriana Negreiros - Maria Bonita, considerando a época e o lugar onde viveu, podemos dizer que era uma mulher empoderada. Ela era casada, tinha um marido sapateiro, o Zé de Neném, um mulherengo tremendo que vivia nos forrós. Maria não gostava dessa situação. Ele estava nos forrós, mas em casa não era muito presente em termos sexuais. Ela não era realizada no casamento. Diante dessa situação, o que se esperava da mulher é que se conformasse, o tal do "é ruim com ele, mas é pior sem ele". Ela não se conformou. Quando ficava muito brava com o Zé, voltava para a casa dos pais, e não para chorar, mas porque queria ir para os forrós. Há relatos de que ela tinha um amante, o João Maria de Carvalho, comerciante filho de um coronel. Ela ia compensar as frustrações na cama. Aos meus olhos, isso só engrandece sua figura. Era uma mulher danada, arretada, que não se importava com o que diziam a respeito dela. Mas ao mesmo tempo em que era empoderada, qual foi a salvação que escolheu? Ser salva por um príncipe encantado, precisou ser resgatada. E no cangaço havia uma situação de completa opressão, todas as mulheres eram consideradas propriedade privada dos maridos.

 

O POVO - O subtítulo do livro é Sexo, mulheres e violência no cangaço. Qual o peso de cada um desses elementos?

Adriana Negreiros - Nunca pensei sobre o peso de cada um. Essa não é uma biografia clássica, não tem aquele formato de infância, adolescência A escolha que fiz foi contar a história de Maria Bonita e das mulheres que conviviam com ela. É também uma história de grande violência de gênero, e

aí entra a questão do sexo. A violência era constante na vida delas.

 

O POVO - O que se sabe de concreto da infância e adolescência de Maria Bonita?

Adriana Negreiros - Muito pouco. Ela tinha uma vida de criança do sertão. Brincava com espigas de milho. Seus pais não eram pessoas de posse, viviam de plantação, de uma criação ou outra. Era uma família numerosa, 12 filhos ao todo.

 

O POVO - Ela foi a primeira mulher a entrar no bando de Lampião. Tinha uma espécie de primazia perante as outras, privilégios por ser a mulher do líder?

Adriana Negreiros - Ela tinha uma ascendência sobre Lampião, coisa que as outras mulheres, de forma geral, não tinham. A Dadá tinha muita ascendência sobre Corisco. Muitas vezes, como o Corisco vivia bêbado, ela assumia o comando do grupo. Maria tinha grande influência sobre Lampião. Tinham uma relação de afeto, o que não acontecia com muitos outros casais de cangaceiro. Ela o convencia a não aplicar determinados tipos de castigo em algumas vítimas. Como mulher do chefe, tinha lá seus privilégios. As pessoas que participaram do bando diziam que ela trabalhava muito menos que as outras. Não fazia nada nos sábados, domingos e segundas. Ficava zombando das outras, era muito bem humorada.

 

O POVO - Você tem informações sobre a origem do nome "Maria Bonita"?

Adriana Negreiros - Ela morreu sem saber que era Maria Bonita. São duas versões. A primeira é de que foi uma criação da imprensa, dos jornais cariocas. Frederico Pernambucano de Mello, o maior especialista em cangaço, defende essa tese. A outra versão é que foi uma criação das volantes, dos soldados. Quando receberam as cabeças, não sabiam quem era quem e resolveram que aquela seria Maria Bonita, porque ela tinha o rosto mais aformoseado.

 

O POVO - Nas fotos em que aparece, Maria Bonita está sempre muito bem arrumada, penteada, cheia de joias. Essa imagem que contrastava com a aspereza do sertão ajudou a imortalizá-la no imaginário popular?

Adriana Negreiros - Acho que sim. Era muito tentador criar uma história de amor em torno deles. Isso foi feito. O que acontece é que havia uma lacuna muito grande de informação sobre essas mulheres. O que se sabia era o que os policiais diziam, que eram bandidas sanguinárias. Elas começaram a ser retratadas dessa forma. Foi a versão assumida pela indústria cultural, as camponesas revolucionárias. A indústria de entretenimento também se apossou da figura de Lampião e Maria Bonita. Era tentador criar uma história para o casal. Mas há uma polêmica sobre a beleza de Maria Bonita. As outras cangaceiras diziam que ela não era isso tudo. A Sila, que era amiga dela, dizia que era baixinha e gordinha.

 

O POVO - Você disse que se interessou por Maria Bonita quando se descobriu feminista. Ela se sustentou como uma figura feminista após sua pesquisa?

Adriana Negreiros - Não. É uma ilusão considerá-la feminista. Foi importante para o feminismo porque rompeu com alguns padrões da época e porque tinha esse comportamento de pouco se lixar para o que pensavam dela. Isso é absolutamente importante. Mas dentro do bando não havia esse comportamento feminista, não havia a consciência da opressão de gênero, o conceito de sororidade. Lá, as mulheres eram machistas umas com as outras, não se apoiavam. A Lídia, quando recebeu a pena de morte por ter traído o Zé Baiano, apelou pra Maria Bonita, mas não adiantou nada. Quando a Lili, que era mulher do Moita Brava, foi morta, Dadá disse que ela fez por merecer, porque era muito descarada. Maria Bonita foi uma das grandes defensoras da morte de Cristina, mulher do Português, pela suspeita de que ela havia traído o marido. Eram comportamentos machistas, mas claro que temos que considerar o ambiente. Seria muito exigir delas esse comportamento feminista de se rebelar contra a situação. Não dá pra chamar de feminista, mas dá pra dizer que foi uma mulher importante pra luta das mulheres, porque ela foi transgressora.

 

Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço

Autora: Adriana Negreiros

296 páginas

Objetiva

Preço: 49

 

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