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A imaginação em perigo
Vida & Arte

A imaginação em perigo

| Artigo |A escritora e colunista do O POVO Socorro Acioli analisa a polêmica envolvendo a obra O menino que espiava pra dentro, da escritora Ana Maria Machado
Edição Impressa
Tipo Notícia
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Recebi uma mensagem pelo WhatsApp acusando Ana Maria Machado de fazer apologia ao suicídio entre crianças. Vinha acompanhada da foto de um trecho do livro O menino que espiava para dentro. Um pedaço, somente, sem qualquer contextualização. A princípio não dei importância, achei que pudesse ser o olhar errado de uma pessoa só. Em pouco tempo vi que estava enganada, a mensagem espalhou-se por todos os lados da internet, este circo de horrores. O olhar errado vem de uma geração inteira de adultos que perderam o contato com a imaginação, a fabulação, o mundo dos livros, a sagrada e indispensável Literatura. Parece um pesadelo.

 

O livro conta a história de Lucas, um personagem que acessa o mundo da sua imaginação comendo uma maçã, recurso narrativo recorrente na literatura infantil universal. Alice cai em um buraco, bebe e come coisas estranhas, Narizinho dorme na margem do ribeirão, Harry Potter sopra o pó de flu, cada um vai para o mundo da ilusão do seu jeito. O livro acaba, a história termina e qualquer criança habituada a ler sabe que ao fim do enredo a vida volta ao normal, com outras regras e outro sistema de funcionamento. Um leitor sabe que o cotidiano e suas exigências estão separados da Literatura e é isso que faz dela uma necessidade humana. É isso mesmo que acontece com o personagem Lucas, que acorda com um beijo e um abraço da mãe.

 

E o que é, então, a tal Literatura?

 

De um lado está a vida real, os afazeres de uma casa, contas pra pagar, trabalho, trânsito, violência, problemas sociais, crise política, família, piolho dos filhos, os chatos do mundo, aniversários, supermercado, gripes, filas de banco e tantas outras coisas, a realidade que enfrentamos todos os dias.

Do outro lado estão as histórias sobre fadas, castelos, bruxas, madrastas, lobos, meninos, meninas, famílias, avós, porquinhos. Na vida adulta chegam os romances de amor, grandes sagas da humanidade, pequenos casos do cotidiano, o passeio de uma borboleta, viagem no tempo, desaparecimentos, animais que falam e todas as possibilidades que ampliam a experiência de mundo.

 

Sempre repito o que disse o escritor turco Ohmar Pamuk - ler é viver duas vezes. A nossa vida real e as outras, muitas outras. E como dizia a mãe da minha grande amiga Izabel Gurgel, todo mundo precisa de uma ilusão. Justamente para aguentar a vida, aprender a lidar com as pessoas e os próprios sentimentos, a Literatura é uma das melhores ilusões possíveis.

 

Muito do que sei sobre literatura, aprendi com Ana Maria Machado. Nos seus livros infantis, seus textos teóricos e na sorte imensa de ser sua amiga e ter conversado tanto com ela em momentos diferentes da vida. Uma mulher única, ética, um ser humano que serve de exemplo, sobretudo para mim. Saber que Ana Maria estava sendo acusada por uma profusão de interpretações erradas e deslocadas do seu texto é uma dor dupla. Primeiro por imaginar como deve estar sendo difícil para ela, depois de dedicar a vida à literatura brasileira, enxergar que ainda somos um País com graves dificuldade de compreensão de um texto literário a ponto de acusar com tanta violência uma profissional que não merece.

 

Segundo, pela pena que eu sinto das crianças que estão sendo privadas do direito de imaginar, de cair em todas as artimanhas da fabulação, que não podem mais ler Monteiro Lobato, que perderam o acesso aos contos de fadas originais porque tudo foi cortado e censurado.

 

Lucas não morre engasgado, não pensa em morrer. Ele brinca, come a maçã e adormece como se fosse a Branca de Neve. Isso não é uma verdade, é algo dentro do contexto da história. Logo depois sua mãe o acorda, dá um cachorro de presente e ele se divide entre as alegrias do sonho e da vida. Nada de ruim, de negativo, de pesado. Apenas uma criança usufruindo do direito de imaginar.

 

Toda leitura, especialmente quando acompanhada e compartilhada com a família, é uma porta aberta ao diálogo sobre todos os temas que o texto desperta. Se um menino perguntar se é verdade que engasgar com a maçã leva a um mundo mágico, bastaria dizer que foi só um sonho do personagem, que ele voltou pra sua mãe, ganhou um cachorro e que as coisas nos livros são diferentes da vida.

 

O mundo virou um cenário de pequenas guerras cotidianas, um atirar de pedras apressado contra todos. Se os adultos que perdem tempo na internet condenando artistas como Ana Maria Machado estivessem lendo um bom livro, as coisas estariam bem melhores por aqui. Que tempos difíceis para viver.

Socorro Acioli é escritora, jornalista, Doutora em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Literatura Brasileira, com ênfase no texto infantil, pela Universidade Federal do Ceará.

 

SOCORRO ACIOLI

ESCRITORA E COLUNISTA DO VIDA&ARTE
vidaearte@opovo.com.br

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