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Obscena senhora h
Vida & Arte

Obscena senhora h

| Literatura | Obra e vida de Hilda Hilst ganham holofotes com lançamentos, entre os quais uma biografia e um documentário
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Corriam os anos 1990 quando Hilda Hilst comprou uma televisão. A escritora, que já vivia na Casa do Sol havia tempos para escapar à boêmia de São Paulo, tinha propósito claro: ver o máximo de novelas e telejornais a fim de aprender algo que sentia escassear em suas histórias - começo, meio e fim.

 

Tanto tempo depois, e com boa parte dos seus trabalhos voltando às livrarias, a necessidade de que a entendessem nunca esteve tão perto. Homenageada pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), de 25 a 29 deste mês, Hilda é objeto de biografia (Eu e não outra, da Tordesilhas), coletâneas de textos em prosa e teatro e um documentário que resgata uma centena de gravações em fita cassete que a autora de Fluxo-floema manteve na tentativa de se comunicar com o além.  

 

E nisso talvez resida uma chave-mestra de leitura para sua obra: HH queria fazer contato. Fosse com os vivos ou os mortos, nas narrativas hilstianas sobressaem os esforços de entabular uma conversa íntima com os leitores. Nas inúmeras entrevistas que concedeu, reunidas depois no livro Fico besta quando me entendem (2013), é frequente a queixa de que não tinha público, de que os editores não a compreendiam, de que a crítica a considerava hermética e por vezes árida e sua personalidade, intratável.

 

Daí o apelo ao erotismo, forma que encontrou para atenuar certo abatimento que a afetava diante da recepção fria a sua obra. Nela o escatológico e o poético passariam a conviver harmoniosamente, produzindo espaços de fresta entre os quais a escritora fazia questão de introduzir seus dedos à procura do que costumava chamar de visceralidade - o que vai no mais fundo das pessoas. Constituía um modo de se tornar mais palatável.

 

Era uma escatologia jocosa que vazava também para o cotidiano. Num encontro com estudantes na Universidade de Campinas, por exemplo, propôs certa vez que meditassem a respeito da sonoridade da palavra "cu".

 

Além do traço de erotismo, a literatura de HH era vincada por outras constantes: a loucura do pai, poeta e esquizofrênico; o amor; e o abandono, referido como derrelição num de seus romances mais marcantes e cuja inicial daria nome à personagem principal da história, A obscena senhora D - um "d" de desamparo.

 

Numa das suas entrevistas, HH segreda ao jornalista que a visitara em casa: "Eu imaginava que aos 60 anos ia enfim ficar no coração do outro". À indiferença que havia se esboçado em torno de seu novo livro, respondia que jamais voltaria a escrever. Segue-se algum silêncio, rompido com risos.

 

Gesto típico da escritora: intercambiar expressões - para ela, riso e tragicidade/erotismo eram complementares -, conectar altos e baixos, estabelecer entre as ruminâncias de pensamento em prosa e o trabalho poético uma ligação única, criada em travessia que a autora cumpria como se entregue a um sacerdócio. Fazia isso em vida, combinando a residência literária da Casa do Sol aos exercícios de investigação da energia cósmica e à expressão dos mortos, que buscava capturar como a provar que o divino habita o terreno e vice-versa.

 

Esforço presente sobretudo na sua literatura, como nos versos de Cantares de perda e predileção: "Dúplices e atentos / lançamos nossos barcos / nos caminhos dos ventos. / E nas coisas efêmeras / nos detemos".

 

É precisamente na efemeridade do homem-bicho que ela praticou o seu noviciado de "ódio-amor", movimentando-se entre antípodas. Da leva de novos livros que tratam seja da obra, seja da vida de Hilda, destacam-se os traços da personagem, mas também o continuum que enreda todo o trabalho de HH, que, desde a estreia aos 20 anos até o último livro publicado, punha em horizonte sempre o mesmo desejo: que o leitor se entregasse aos prazeres da sua palavra carne-espírito.

 

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