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Como Rachel de Queiroz apresenta o sertão a partir dos seus sabores
Vida & Arte

Como Rachel de Queiroz apresenta o sertão a partir dos seus sabores

| VALE RELER | Em livro sobre as iguarias da culinária interiorana, Rachel de Queiroz apresenta o sertão a partir dos seus sabores, personagens e histórias de vida
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O cheiro do café torrado no velho quintal dos fundos convida memória e sentidos. É assim que, por uma imensidão de sensações e afetos, Rachel de Queiroz nos apresenta o seu Não me deixes: lugar de pertencimento, histórias e sabores a perder de vista. Neste que foi o refúgio predileto da escritora, localizado cerca de 30 quilômetros do município de Quixadá, inúmeras receitas copiadas de mão em mão desbravam a cozinha sertaneja por meio de seus encantos. Em O não me deixes: suas histórias e sua cozinha, obra publicada há 18 anos, Rachel revela sua visão mais íntima do sertão central cearense - um rico universo no qual sabores, lugares e lembranças se encontram profundamente entrelaçados.

[SAIBAMAIS]

Passeando por memórias partilhadas entre gerações distintas, a escritora recorda práticas culinárias sertanejas; sobretudo aquelas que, de modo meio místico, quase sempre estiveram sob a guarda dos cuidados femininos. Estes segredos culinários, por exemplo, por muito tempo se materializaram na figura de Nise, cozinheira cujas mãos durante mais quarenta anos conduziram com domínio e maestria os quitutes da cozinha dos Queiroz. É dela a receita de requeijão, um dos pratos mais deliciosos dos quais Rachel tinha lembrança. De suas reminiscências, ela recorda ao leitor o que descobriu ser a melhor forma de comê-lo: “mal saído da panela, ainda quente e derretido na travessa”.


Estas lembranças colhidas ao pé do fogão a lenha colorem e dão forma ao livro, de leitura tão rápida quanto rica em pormenores. Aliás, o velho fogão de tijolos é um dos tantos objetos que, no imaginário da escritora, ancoram a lembrança deste sertão distante (geograficamente) e ao mesmo tempo tão próximo de seus afetos. Um sertão de fartura, mas também de escassez; lugar onde muitas casas se resumem a quatro paredes, alguns tamboretes, panelas de barro e redes de dormir. Para Tiago Cavalcante, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), as experiências pessoais são sempre muito marcantes na narrativa da autora. “No interior de Quixadá, Rachel viveu boa parte da infância e para lá retornou em diversos momentos da vida. Por isso quase todos os seus escritos se voltam para esta experiência sertaneja - áspera, mas misteriosamente amada”, diz.

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Entre receitas, crônicas e causos do seu semiárido, Rachel nos apresenta algumas preciosidades desta culinária rústica: o queijo de coalho, o milho, a castanha de caju e a farinha de mandioca. Em seu “menu” também estão o feijão, a rapadura e todos os alimentos que “dão sustância” à dieta sertaneja. Nesta cozinha também há espaço para compotas e diversos doces que, aliás, são o foco da autora: doce de caju, castanhas confeitadas e o autêntico bolo “da vozinha Rachel”. Para Tiago, todos estes alimentos conduzem para a paisagem própria do Não me Deixes, cuja construção se materializa ao longo das páginas. “Um espaço se dá a conhecer por meio de todos os cinco sentidos. O paladar, porém, exprime um significado muito particular de nossa concepção de lugar”, explica.


Nesta obra tudo é, ao mesmo tempo, duro, corriqueiro e belo. Por meio das receitas de Nise, de sua mãe Clotilde e de todas heranças gastronômicas de sua família, a escrita de Rachel traduz a própria existência do sertão - onde doçura e rusticidade curiosamente dividem o mesmo cenário.


Neste lugar de simplicidade, Rachel confronta os excessos da vida moderna e compreende a universalidade do ser sertanejo a partir de sua ligação imaterial com tudo o que o cerca: a terra, as plantas, os homens e os bichos. De dentro do Não me deixes, suas histórias e sua cozinha, a autora aprende a vivenciar o seu “dia a dia, sem conhecer ambição”. Neste sertão que não conhece celeiros nem gordos rebanhos, se entranha, assim, uma lição de vida fundamental: a do contínuo encantamento com a simplicidade.

 

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