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As intimidades da cozinha
Vida & Arte

As intimidades da cozinha

| Diálogo | A historiadora da arte Carolina Ruoso troca cartas com a artista visual Carmem Lazari sobre as provocações do corpo no ambiente doméstico
Edição Impressa
Tipo Notícia

Carmem Lazari,

 

Em uma entrevista você declara que se identifica como cearense de coração, por afeto e envolvimento. Como a sua experiência de artista no Ceará contribuiu na sua trajetória e na ampliação do seu repertório em pesquisa artística? Você mora em São Paulo. Podemos considerar que o Ceará tem uma cena artística que proporciona experiências enriquecedoras para quem chega de longe? A imagem do coração tem um lugar especial no seu trabalho. Você poderia descrever um pouco da sua pesquisa? Nesse seu percurso e deslocamentos entre Fortaleza e São Paulo observamos que esse seu coração expande seus sentidos e explode em coquetel molotov. Como seu coração ganhou ideias incendiárias? Você desenvolve um trabalho em bordado. A sua passagem pelo Ceará, tem relação direta com a sua pesquisa em bordado? Pergunto se seria o conhecimento da obra de Leonilson que te levou a buscar Fortaleza como lugar para atuar como artista. Teria alguma relação com a importância de Leonilson para a formação de uma nova geração de artistas cearenses do século XXI?

 

Nesta nossa conversa, especialmente nesta carta, quero me dedicar à sua pesquisa em artes, seu projeto artístico intitulado Impressões eróticas bordadas em tecidos ordinários. Quero que você fale um pouco sobre seu processo de criação, sobre como chegou a esta pesquisa, pois ela traz algo do cotidiano, da nossa vida prática, essa tua proposta de criação em panos de prato, usados, desbotados, lavados e lavados tantas vezes. Neles você escolhe bordar o corpo da mulher, o útero e as trompas, a vulva, escreve, e, portanto, nomeia: buceta, vagina, livre, corpo... a partir de qual momento você começa a desenvolver esta pesquisa? Foi depois do coração transformar-se em coquetel molotov? Você disse em uma entrevista que foi ao Ceará em busca de um novo coração. Este novo coração ganhou força com o feminismo?

 

O pano de prato ocupa um lugar simbólico na vida de muitas mulheres. Eu poderia tentar fazer um itinerário da vida de um pano de prato, imaginar seus usos e metáfora dos sonhos de muitas  mulheres, ao preparar o enxoval, por exemplo. Ou das mulheres que decidem seguir solas, elas sabem qual é o lugar desse pano de prato que se esgarça. Gostaria que você pudesse nos falar um pouco sobre esta escolha sua de bordar o corpo da mulher em panos de prato. O desenho da vulva em um objeto de uso doméstico, um objeto que tem a função de enxugar, de secar as coisas, além das louças, panelas, facas e garfos, talvez, também enxugue tantas lágrimas ou mesmo o suor de mulheres em constante luta, um tecido que guarda os segredos da intimidade da casa e, principalmente, das conversas com outras mulheres na cozinha. Entretanto, a vulva tão silenciada, tão esquecida, representa um lugar de emancipação da mulher através do conhecimento do seu próprio corpo, lábios que falam de um corpo que cala? A vulva, bordada, fio a fio, a vulva de bordado cheio, a vulva entumecida é uma vulva emancipada, é uma vulva com clítoris, é a vulva de uma mulher que sabe ser dona do seu prazer, do seu orgasmo.

 

O trabalho do bordado cria uma vulva volumosa, em relevo, em vermelho e rosa, intenso, e, traz uma potência ao pano, que é sobra, rebotalho. Você acredita que sua pesquisa em arte sobre a representação da vulva da mulher, que é tão esquecida, é um tecer de uma história do ponto de vista feminista? Tesão e tensão, respeite meu corpo, estão relacionados às experiências de violências vividas pelas mulheres? Que fios são esses? Seriam feridas guardadas no corpo e na mente? Você desenha uma vulva com um coração e escreve “buceta” em um objeto de cozinha que é uma peneira. Qual é o significado poético da peneira? Forma, estrutura ou há metáforas importantes entre peneira e a palavra buceta? Não aprendemos sobre o clítoris, não aprendemos a olhar para as nossas vulvas, seus lábios, há um desconhecimento sobre a importância desse órgão cuja única função é nos dar prazer, é nos proporcionar o orgasmo, fazer entumecer as nossas vulvas/vaginas. Muitas vezes nós nãos conversamos sobre o clítoris nas cozinhas, nem nos quartos das nossas casas. Trazer esses desenhos das vulvas nos panos de prato é trazer esse tema tabu para nossa intimidade. Pois através do olhar para esta arte, nos conhecemos entre mulheres, enquanto cuidamos dos afazeres domésticos ou enquanto enxugamos a louça. Ou, ainda, quando nos fortalecermos mutuamente nas reuniões promovidas por nós mulheres que nos sonhamos emancipadas.

 

Carolina Ruoso,

historiadora da arte


Carolina,

 

É no Ceará, mais especificamente em Fortaleza, que decido ser artista. Talvez fosse o sol em abundância. Talvez fosse o contato direto com tantas artistas mulheres incríveis. Talvez fosse a relação da minha solidão com tudo isso que me fez querer produzir como artista. Quando vim para cá para morar durante quatro anos, de 2010 a 2014, via cores intensas pela Cidade causadas pelo sol, sentia a época de ventos fortes nos meses de agosto e setembro, bem como o cheiro de brisa praiana, que pra mim só Fortaleza tem e que me invade os pulmões logo que chego e as portas do aeroporto se abrem. Minha relação com a cidade é cinestésica, ela me envolve por inteiro e eu me deixo levar.

 

Me considero mais cearense do que paulista. Apesar de não ter nenhuma relação parental, considero Fortaleza a minha casa e amo o Ceará. O fazer artesanal das rendeiras de bilro sempre mexeu e ainda mexe comigo. O jeito simples delas sentadas no chão, descalças, com suas almofadas cheias de alfinetes e com linhas sendo trançadas com o bilro vão dando vida a uma nova renda, e isso é lindo demais. Fortaleza me deu a possibilidade de ser artista. Quando eu vim para Fortaleza, vim com o coração partido por uma relação afetiva em que eu apostei demais e no fim não deu certo. Sendo assim, aqui comecei a experimentar a xilogravura, já que no MAC (Museu de Arte Contemporânea do Ceará) existia uma prensa. Da gravura em papel, começo a imprimir em tecido. Depois fiquei com vontade de interferir com linhas coloridas a gravura que era em tinta preta, sem ainda pensar em técnicas de bordado. Existe em mim uma rebeldia natural, uma vontade grande de viver e subverter as coisas.

 

A imagem da mão delicada que segura um coquetel molotov surgiu em 2013 junto com os atos insurgentes que começaram a crescer no país contra a copa do mundo. Acho que eu sou um pouco incendiária. Na época estava em São Paulo e pude participar do ato contra o preço do aumento do transporte público. A partir daí a minha poética começa a sair de mim e vira-se para o entorno. Trago de forma sutil e delicada a violência da explosão social, que eu, nascida no ano de 1968, tanto ansiava vivenciar.

 

Carolina, fico enormemente lisonjeada quando fazem essa relação entre o meu trabalho e o do Leonilson, um artista que eu amo tanto e que já me fez chorar inúmeras vezes. No Ceará tive esse start. Cresci vendo uma avó costurar. Minha avó costurou até os seus últimos dias, com 94 anos de idade. Ela era impecável, eu não. Quando criança tive dificuldade e resistência para aprender a bordar. Bordar para mim era coisa de mulher domesticada, e eu já pequena sabia que jamais seria. A própria obra de Leonilson tem um quê de imperfeição e é tudo tão lindo e tão intenso e simples. Talvez eu tenha guardado em minha memória afetiva os trabalhos dele e percebido que era possível pensar arte e criar assim.

 

Depois do coquetel molotov veio a pussy riot e daí surgiram partes do corpo da mulher. Tenho por hábito, faz alguns anos, comprar em lojas de bairro panos de pratos bem baratos com impressão de frutas, flores e desenhos singelos. Os transformei numa série de nome Impressões eróticas bordadas em tecidos ordinários. Faço uma ressignificação desses desenhos com o bordado. Quando eu olho pra eles, não vejo as frutas, vejo partes do corpo feminino, um seio, uma vagina, e daí vou bordando em cima, mas deixando partes dessa impressão à mostra, pois não quero o total apagamento dos motivos originais.

 

Como mulheres somos criadas para casar e formar uma família, e isso para a sociedade é sinal de sucesso. Quando tive a oportunidade de realmente ficar sozinha e tocar a minha vida como sempre quis, me ver e aceitar como realmente sou - e que a vida é possível assim - isso acabou se refletindo na minha poética. O pano de prato é visto como um objeto decorativo da cozinha. Cozinha que é lugar de se preparar comida, lugar de encontros e de intimidades. Lugar esse que quase sempre é destinado à mulher, para fazer comida aos entes queridos e com amor. Essa obra trata-se de intervenções de bordado livre em panos de prato comuns, imperfeitos, comprados em comércio popular de bairro, e, portanto, usados por muitas donas de casa.

 

Nos panos de pratos existem desenhos impressos que no geral são de frutas, flores, arabescos e é aí que acontece a subversão. São nesses desenhos impressos, utilizando dos movimentos dos riscos, que o bordado aparece em formas de partes do corpo feminino: um par de seios, uma vulva, pernas abertas. Como uma provocação ao sagrado lar. Deixo partes impressas à mostra para que o expectador se sinta incomodado e seja convidado a subverter o pensamento e a condição do papel da mulher na família e na sociedade. Passamos tanto tempo escondendo os nossos corpos... Homens podem coçar o saco escrotal, mas mulheres não podem coçar as vaginas. Esse "escancaramento" da genitália feminina é intencionalmente provocador. Por que não vagina? Por que não buceta? Eu hoje, mais do que nunca, não quero me calar. Nós temos muito a dizer e vamos dizer. No desenvolvimento do meu trabalho não penso em ser tão cerebral.

 

A vulva/vagina apareceu de forma orgânica, para mim foi natural chegar nela, já que estamos vivenciando novas maneiras de pensar os feminismos. Particularmente, não gostaria que a minha potência poética estivesse apenas atrelada ao feminismo, o que eu faço é arte e ponto! Para mim é o ponto de vista de uma mulher que por acaso é artista.

 

Tesão e tensão nasceram de uma visita minha a uma exposição do Haroldo e Augusto de Campos. Me apropriei da poesia concreta e quis experimentar palavras bordadas dentro dessa poética de brincar com as palavras e linhas. Foi apenas um recurso poético. Para mim não existe nenhum sofrimento nas minhas obras, cada vagina é libertária, são felizes e independentes. Estão a gritar por aí a sua existência.

 

Preciso contextualizar, trabalho boa parte do ano em home office. O fato de trabalhar em casa me faz olhar para ela de outras formas. Já fiz ensaios fotográficos com as roupas do meu varal, com os potes dos alimentos do armário, com a comida embalada na geladeira. Faço da minha casa meu atelier, e como todo atelier estou constantemente em experimentação. Compro alguns objetos que não sejam tecidos e que me deem como possibilidade pensar o bordado de forma expandida. A obra Buceta em peneira nasce dessa busca, quis subverter o uso do objeto. A leitura da minha obra Impressões eróticas bordadas em tecidos ordinários fica por conta da espectadora e da relação que cada uma tenha com o seu corpo/objeto. Eu apenas quero dar conta de provocar/incomodar e trazer questionamentos sobre o papel social da mulher contemporânea. Quero trazer o tema que é tabu e esfregar na cara da sociedade com esses panos de prato, quero que o universo que era íntimo atravesse as paredes dessa cozinha.

 

Carmem Lazari,

artista visual

 

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