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A libertação pela memória
Vida & Arte

A libertação pela memória

| Lançamento | Em Memória dos Ossos, seu romance de estreia, Juliana Diniz cria um engenhoso jogo literário que faz da narrativa um instrumento de sublimação da tradição e da saudade
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No início dos anos 1970, em carta a seu amigo Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade saúda o então novo livro do memorialista mineiro, o hercúleo Baú de Ossos. "Do baú salta a multidão antiga dos vivos. Nava tem o dom estético de, pela escrita, ressuscitar os mortos", resumiu. "Seus guardados", porém, "nada têm de fúnebre", advertiu o poeta.

 

O memorialismo de Nava assombrou a crítica de plantão tanto pelo virtuosismo de sua escrita - a descrever um amplo panorama da sociedade e da cultura brasileiras no século XIX e no início do século XX - quanto pelo modo como sua crônica autobiográfica se aproximava da melhor ficção literária. Nava, entretanto, apenas insinuava, a partir de sua estética precisa, essa dimensão ficcional, nunca rompendo efetivamente os limites daquilo que era, rigorosamente, recordação, realidade.

 

Em seu belo Memórias dos Ossos, que acaba de sair pela editora Dummar, Juliana Diniz implode essa cancela que separa lembrança e ficção, ao mesmo tempo em que atualiza alguns predicados de Nava, reivindicando à memória uma potência criadora que é o próprio motor de sua narrativa. E também essência fundadora de seu espaço ficcional.

 

Marília, a protagonista, órfã de pai e mãe, divide uma casa de classe média com sua irmã e a avó adoecida, que também experimentara a morte dos dois homens com quem convivera. Ilara, uma tia-avó, orbita em torno desse núcleo principal. O tempo de Marília se divide entre os cuidados com a avó, as tensões com a irmã e a lembrança fugaz de seus pais.

 

É na relação com esses "guardados" que a narrativa vai se insinuando, na arqueologia doméstica que Marília começa a operar a partir dos relatos de sua avó, das imagens e objetos espalhados pela casa. Cansada de "conviver" com seus mortos, ela busca uma catarse que lhe liberte do tédio e da tristeza. "Precisamos explicar aos nossos mortos que eles já morreram. Para que fiquem sozinhos e entendam que é tempo de partir", diz a protagonista.

 

Juliana propõe ao seu leitor, então, um engenhoso jogo literário em que cria as memórias das personagens - com detalhes de sua própria memória, como a autora explicou em entrevistas - para que essas possam criar, dentro da primeira ficção sugerida pela escrita, uma nova camada de ficção. A escritora inventa uma narrativa em que seus personagens criam suas próprias narrativas, através das quais, afinal, poderão sublimar certo peso da tradição e da saudade.

 

"Nós esperamos demais dos nossos mortos", avisa Marília. E, em direção à avó, propõe: "posso ajudar você a reencontrá-los. Juntando as peças, ajudando-a a relembrar com pequenas invenções, mentiras inofensivas". "Como?", pergunta a matriarca. "Escrevendo uma história para você. Uma história que você poderá reler muitas vezes até que não saiba mais o que é inventado e o que é verdade".

 

Memória dos Ossos é permeado por aquilo que Lezama Lima vai nos falar sobre a memória. Ao contrário da recordação, ato que se vincula ao espírito - e nisso podemos situar o cortejo memorialístico de Pedro Nava -, a memória e seu poder de metáfora se afirmam como um "plasma da alma". É sempre "criadora, espermática, pois a memorizamos a partir da raiz da espécie". Em sua jornada íntima, Juliana e suas personagens vão à raíz atávica de sua genealogia para extrair de lá a libertação pela memória

 

Assim como o baú de Nava, as memórias de Juliana nada têm de fúnebre. Pelo contrário, expressam um desejo de produção de subjetividade, uma busca por liberdade, que é, certamente, uma das coisas mais vivas que podemos desejar no trato com nossa memória. O encontro de Marília com seus antepassados a partir desse expediente narrativo vai resultar num final arrebatador, com imagens de grande força poética - em particular a carta que a narradora dirige à mãe falecida - que colocam Juliana como uma das vozes mais talentosas e surpreendentes desse nosso tempo-espaço literário.

 

*Felipe Araújo é jornalista

 

Bate-papo e lançamento de Memória dos ossos, de Juliana Diniz

Data: dia 28 de julho, às 19 horas

Local: Livraria Cultura (av. Dom Luís, 1010, Loja 8 - Aldeota)

Preço do livro: R$ 19,90. Já disponível para venda em livrarias e sede do O POVO

Entrada gratuita

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