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Disco inaugural dos Mutantes celebra 50 anos
Vida & Arte

Disco inaugural dos Mutantes celebra 50 anos

| ROCK NACIONAL | Há 50 anos, chegava às lojas o disco de estreia dos Mutantes. Da irreverência à inventividade, era o primeiro capítulo de uma história cheia de passagens cômicas e trágicas
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Existem muitas portas de entrada para conhecer a obra dos Mutantes. Tem as capas conceituais e engraçadas. Tem a inventividade sonora do trio que misturava, no mesmo disco, rock lisérgico, baião nordestino, samba rock levado ao violão e chanson francesa. Ou ainda a irreverência incontrolável de três jovens compositores capazes de se vestirem de alienígena e sair de buggy pelas ruas de São Paulo.


O fato é que nada era comum no trabalho dos Mutantes. Ao mesmo tempo, tudo era espontâneo, libertário e divertido para Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Isso já ficou claro bem antes do álbum de estreia, lançado há 50 anos. Quando o LP Os Mutantes chegou às lojas, o trio já gozava de prestígio no meio musical. Cerca de dois anos antes, fizeram a primeira apresentação n’O Pequeno Mundo de Ronnie Von e causaram tanto impacto que entraram para o elenco fixo do programa. Algum tempo depois, conheceram o maestro Chiquinho de Moraes que os indicaria para acompanhar Nana Caymmi em Bom Dia. Daí foi um passo para outro convite: gravar com Gilberto Gil – então marido de Nana – o baião pop Domingo no Parque.


A aproximação com um dos mentores do tropicalismo levou os Mutantes para o cenário ideal. Segundo o biógrafo do trio, Carlos Calado (autor de A Divina Comédia dos Mutantes), primeiro Gil pensou na erudição do Quarteto Novo para acompanha-lo. Mas o conjunto que contava com Hermeto Pascoal, Heraldo Monte, Theo de Barros e Airto Moreira ouviu aquela ideia de misturar música nordestina com Beatles como se fosse uma ofensa à mãe. Para os Mutantes, tudo junto podia dar o maior pé.

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Tanto que eles já saíram da gravação de Domingo no Parque com um convite para um disco próprio. Os arranjos seriam de Rogério Duprat, o mesmo da gravação de Gil. Erudito com mente aberta, o carioca deu materialidade a todas as maluquices que Rita, Sérgio e Arnaldo pensavam. Uma pequena amostra é Panis Et Circences, hino lisérgico dado a eles por Caetano Veloso e Gil. A faixa que também batizou o álbum manifesto dos tropicalistas (também lançado em 1968) é uma viagem sem escalas por paisagens desconexas que criticam a acomodação. Quase operística, a faixa confronta flautas medievais com guitarra elétrica, vocais harmônicos com efeitos eletrônicos.


Diante dessa explosão de timbres, A Minha Menina parece inocente. Composição de Jorge Ben, que canta, tosse e toca violão na faixa, o sambarock não perdeu um grau de frescor nesses 50 anos. O mesmo acontece com a festiva e concretista Batmacumba, outra de Gil e Caetano. Deste último, tem uma versão hilária de Baby, com direito a climas soturnos e lambidas de sorvete. E o que dizer de uma banda de rock que estreia cantando Adeus Maria Fulô, de Sivuca e Humberto Teixeira? Ou ainda Le Premier Bonheur Du Jour, cuja elegância é entrecortada pelo som de um inseticida? Para os Mutantes, nenhum problema. Tudo é música, até uma ode ao conquistador mongol Genghis Khan. E Duprat vibrava com cada nova invenção.


O humor dos Mutantes se manteve em alta por mais quatro discos, até que nem eles aguentaram tanta liberdade. As drogas tornaram-se frequentes, enquanto Sérgio e Arnaldo entraram numa paranoia de levar o rock a “sério”. Chega de figurinos exóticos, deboche e performances hilárias. Agora eles iriam mostrar que sabiam tocar seus instrumentos e entrar numa onda progressiva. Rita, moleca profissional, passou a não caber naquele formato à la Yes. Ela foi expulsa, Sérgio passou a liderar a banda e Arnaldo entrou em depressão até que pulou da janela de um hospital. Toda a graça se perdeu num mar de mágoas nunca superadas e histórias sempre questionadas.


Rita superou o baque, seguiu em frente e tornou-se o maior nome feminino do rock nacional. Sérgio Dias tentou levar os Mutantes por mais um tempo e desistiu, manteve uma pálida carreira solo e a aura de guitar hero respeitado (o que, de fato, é). Em 2006, ele reativou os Mutantes com uma nova turma e segue gravando discos e fazendo shows no exterior. Arnaldo sobreviveu à queda, mudou-se para um sítio paradisíaco e segue compondo uma obra cáustica que nunca se despregou por completo da antiga banda. Já aquela obra tropicalista iniciada há 50 anos segue sendo redescoberta e cultuada dentro e fora do Brasil. Kurt Cobain era fã assumido, enquanto Sean Lennon chegou a dizer que o trio brasileiro foi mais criativo que os Beatles. Se eram ou não, eu não sei. Mas é fato que poucas vezes se voou tão alto no rock brasileiro quanto nas asas dos Mutantes.

 

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