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Em entrevista, atriz Maria Vitória levanta bandeira da empatia
Vida & Arte

Em entrevista, atriz Maria Vitória levanta bandeira da empatia

| ARTES CÊNICAS| Prestes a voltar aos palcos com o solo Duplicité, a atriz e diretora Maria Vitória levanta a bandeira da empatia como saída para tempos de intolerância
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Com 25 anos de carreira nos palcos cearenses, a atriz e diretora Maria Vitória tem como matéria-prima do seu trabalho o mundo ao redor em suas múltiplas narrativas. Graduada em Letras e mestre em Artes Cênicas, ela encontra na literatura fonte para se transmutar em cena. Foi assim com o espetáculo Asja Lacis já não me escreve, peça cuja personagem título evoca a história de militante bolchevique, atriz e diretora de teatro. É assim também com Duplicité, obra que põe em destaque uma escritora fictícia e sua relação consigo mesma e com o outro. Integrante do Grupo Formosura de Teatro e do grupo Terceiro Corpo, Maria é nome presente em variadas produções recentes da Capital, a exemplo de Frei Tito: Vida, Paixão e Morte e de Além Aquém Daqui. Confira entrevista:

 

O POVO: Como a literatura ajuda o teatro a fomentar novos olhares à cena?

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Maria Vitória: Acho fundamental essa interface. Não que o teatro só possa existir a partir desse contato com a literatura, porque existem as diversas dramaturgias, a do ator, a do diretor e uma peça pode ser construída a partir de um objeto. Mas essa conversa com os autores é extremamente saudável e tem passado muito pelo meu trabalho. Mesmo os textos que eu escrevo, que monto a partir do que eu escrevi, tento conversar com outros autores, ler o que eu posso. O livro que é um suporte que a gente está acostumado, habituado, ele faz uma construção que parece solitária, porque você está sozinho lendo, mas, na verdade, não é, porque existe uma pessoa ali em algum momento... Sofrendo, porque escrever dói e muito. Ou se alegrando, além dos múltiplos sentimentos que podem surgir da escrita. Você sente esse respirar do autor, mesmo que ele tenha morrido há séculos. Isso fica registrado no livro. Essa é uma imagem poética que me serve como subsídio, como força motriz para o teatro. Gosto muito de estar sempre no contato com a literatura, mesmo que eu não vá montar textos literários.


O POVO: Duplicité toca em questões sociais, falando, inclusive, do assassinato de Mineirinho, bandido famoso nos anos 1960 no Rio. O que te leva a abordar essas questões?


Maria: Pensar em casos com o do Mineirinho é fundamental nesse momento. É pensar que a gente tem que ter alteridade não só com a Marielle Franco ou com o Lula, mas com um criminoso também. Não é só com essas pessoas que temos de ter alteridade, mas sim com as pessoas que a sociedade não tem nenhuma. Tem muita gente que acha que um criminoso tem que morrer, por isso, é importante fazer um processo de reflexão mesmo com quem a sociedade repudia. Sou totalmente engajada nas questões políticas, estou o tempo inteiro na luta, na fala sobre o Lula, sobre a Marielle, e acho que falar deles é também falar desses caras, que estão à margem.


O POVO: Você provoca com o espetáculo um exercício de empatia. Por que insistir nessa tecla?


Maria: Penso muito sobe isso. Sobre como é incoerente nós termos que criar lei para a nossa falta de respeito. Lei para não bater numa mulher? isso era para ser óbvio. Lei para tratar bem uma criança? Isso também. Nesse momento que esse prédio cai em São Paulo, por exemplo, surgem pessoas culpabilizando, porque eles ocuparam, dizendo que eles eram criminosos... Se ver na dor do outro, na alegria do outro, na desgraça do outro, atualmente, se tornou um ato revolucionário. E não era para ser. Era para ser o óbvio. Eu estou levando isso cada vez mais para o espetáculo. No começo, a peça falava sobre duplo, o eu que sai de mim. Agora não só. Agora é o duplo do outro, que não está nem em mim nem na minha literatura. Como eu convivo com o outro.


O POVO: Na peça, está presente a manipulação de bonecos. Você sente alguma resistência (até da própria classe artística cearense) em relação a essa linguagem?


Maria: De 2007 a 2011, eu fui presidente da Associação Brasileira de Teatro de Bonecos do Ceará e acho que, em todo o mundo, quem trabalha com teatro de boneco é uma minoria. Isso não acontece só no Ceará. Se tem 100 grupos de teatro de ator, só tem cinco de bonecos. Mas esses grupos são resistentes, os de Fortaleza têm até 30 anos. São poucos os grupos que têm todos esses anos. Eu não acho que exista uma resistência por parte dos outros artistas, é mais por parte dos gestores. Durante muito tempo, quem se escrevia com bonecos para o Festival de Teatro de Fortaleza tinha que fazer peça nos terminais. Se fosse para palco, você não podia se inscrever. Eu adoro fazer teatro de boneco na rua, mas é limitador dizer que pode ser apresentado apenas num espaço. E a caixa cênica? Hoje temos a Rede Cearense de Teatro de Boneco, que está bem mais forte, articulada e unida. Sinto menos resistência do poder público, mas o boneco tem sempre que ser o infantil ou a comédia. Não pensam o boneco para um espetáculo existencialista como o Duplicité. Não tem demérito em ser para criança ou humor, pelo contrário, mas não pode haver essa limitação. Teatro de boneco é teatro.


O POVO: Por que é importante falar para a juventude a respeito do Frei Tito?


Maria: Ele traz a questão da ditadura militar, a questão da tortura. É impressionante como tem muito jovem que não sabe ao certo o que acontece na ditadura. Muito menos sabem que existe tortura nas cadeias até hoje. Frei Tito é um cearense que fez com que o mundo todo soubesse que no Brasil tinha tortura, então, para além das coisas que ele fez, a vida dele era o povo. Quando eu conversei com a Nildes, irmã dele, personagem que eu faço, ela me contou que praticamente foi ela que criou o Tito. Ela ficava dizendo para ele: “Tito, ame ao próximo”, mas ela não imaginava que ele ia levar aquilo tão ao pé da letra. A vida dele era voltada ao próximo. Ele se desfez da vaidade pessoal para pensar uma vida digna, de liberdade para os brasileiros. É fundamental em tempos de atitudes tão individualistas, conhecer quem foi esse homem. Faz também a gente pensar na nossa mesquinharia e isso é, no mínimo, incômodo. E que bom que é incômodo. O espetáculo transcende ao Tito, porque o Tito transcende a si. Ele morreu, mas a semente que ele plantou está aqui.


O POVO: Em Além Aquém Daqui, há uma cena com alegoria sobre o impeachment de Dilma Rousseff. Houve algum receio de levar o caso para a cena?


Maria: Acho super importante que esses assuntos cheguem nesse momento, por que a gente vai para o teatro para quê? para rir, esquecer algo, refletir? No meu caso, é para refletir, me tirar da zona de conforto. Então não dá para ficar calado agora, nesse momento. Não estou dizendo que é para todo mundo falar da Dilma, mas que de alguma forma alguém esteja pensando sobre isso, levando para a cena e refletindo a partir de uma metáfora.

 

SERVIÇO


Duplicité


Quando: 11, 18 e 25 de maio, sempre às 20 horas


Onde: Teatro Dragão do Mar (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)


Quanto: R$20 (inteira)


Telefone: 3488-8600

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