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Atriz Grace Passô fala sobre atuação e exclusões ao O POVO
Vida & Arte

Atriz Grace Passô fala sobre atuação e exclusões ao O POVO

| ARTES CÊNICAS | Atriz, diretora e dramaturga, Grace Passô vive ascensão nos palcos e nas telas. No último ano, a mineira acumulou alguns dos principais prêmios do País
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Para o grande público do País, que acaba conhecendo novos atores pelas produções televisivas, Grace Passô pode soar um nome ainda desconhecido. No circuito das artes cênicas (e agora no cinema), entretanto, a atriz, diretora e dramaturga é sinônimo de projetos artísticos bem sucedidos. Somente com a peça Vaga Carne, a mineira ganhou os prêmios Shell-RJ de Melhor Texto e o Cesgranrio de Melhor Dramaturgia, entre outras seis premiações. Foi com esse solo já consagrado que ela desembarcou em Fortaleza na última semana.


Com jeito sereno e firme, a atriz recebeu a reportagem do O POVO uma hora antes de subir ao palco. Tinha de ser naquele horário, pois no dia seguinte, antes do amanhecer, a atriz já partiria pelo País. Era o dia do lançamento de Praça Paris, longa-metragem de Lúcia Murat. Por esse trabalho, o segundo de Grace no cinema, a artista ganhou o prêmio de Melhor Atriz do Festival do Rio no ano passado. Confira entrevista:

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O POVO: Vaga carne põe em evidência a figura da mulher nesse mundo polifônico que a gente vive. O que esse solo está te ensinando (e desconstruindo) sobre o feminino?

Grace Passô: Tem uma questão essencial nessa peça que é o que ela me exige enquanto performatividade. É uma peça que exige que eu escancare o meu corpo publicamente e não é um escancaramento superficial. A peça me exige uma certa nudez e, ao escancarar o meu corpo, obviamente isso me exige muito mergulhar nas questões mais urgentes da minha vida. No meu corpo está muito nítido as minhas questões e uma das primordiais é o fato de eu ser mulher. O fato de eu ser uma mulher como muitas mulheres e o fato de que fiz essa peça, que escrevi essa peça, que trabalho numa zona arriscada de autoralidade. Então é nesse sentido que a peça me exige mergulhar nas questões femininas. À medida em que ela, no seu exercício performativo, me exige escancarar as urgências das identidades do meu corpo.

 

OP: O texto é seu e é interpretado por você, o que acaba te atravessando de diferentes formas. O papel da atriz é muito diferente do papel da dramaturga?

Grace: Apesar de estar ligada em funções diferentes na peça, eu lido tudo no mesmo lugar. Mesmo quando eu atuo com um texto em que eu não escrevi, eu sempre me proponho a fazer parecer que aquele texto é meu. Eu tenho uma preocupação e um desejo de me apropriar das palavras e dos discursos em cena. Eu tenho várias experiências, dentro do teatro e poucas dentro do cinema, em que eu tenho que dizer coisas que eu não escrevi, mas tenho sempre uma relação com as palavras muito pouco submissa. Sempre vejo as palavras como um lugar de atravessamento para eu dizer outras coisas. Para mim, está tudo no mesmo lugar. Antes de tudo, me interessa fazer do teatro um lugar de experiência coletiva e aí eu não separo em setores. No caso de Vaga Carne, apesar de eu ter escrito a peça, chamei uma equipe para me auxiliar na concepção dela. Chamei parceiros antigos que eu já trabalho há muito tempo. Isso me fez ter outras perspectivas de criação além da mim.

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O POVO: No palco — e fora dele —você exala firmeza. O fato de ser artista, mulher e negra te ensinou sobre firmeza?

Grace: Acho que não por aí... Acho que a arte que a gente elabora tem uma ligação muito íntima com o que a gente é, mas isso não quer dizer que ela é exatamente o que a gente é. É sempre resultado de alguma coisa que tem uma ligação com o que você é, mesmo que a sua expressão seja a negação do que você é. Eu me vejo forte em cena, mas me vejo frágil também. Eu tenho uma preocupação muito grande de não diminuir meus espaços de liberdade expressiva, inclusive, a liberdade de ser frágil. Então eu não acho que as coisas que eu faço são exatamente o que eu sou na vida. Acho que o meu trabalho é uma resposta, através da linguagem, a muitas coisas que eu sou na vida, inclusive, frágil.

O POVO: O que a dramaturgia no Brasil perde por ser um espaço predominantemente masculino?

Grace: Acho que tem milhares de espaços na arte brasileira que são predominantemente masculino, porque o nosso solo é patriarcal, nossa sociedade é machista. A necessidade de colocar em evidência a perspectiva da mulher no mundo, na arte, está em vários campos da nossa sociedade e a dramaturgia é um deles. A escrita e muitos outros espaços conceptivos da arte nos aparecem muito através de uma olhar masculino. A nossa sociedade precisa assumir o olhar da mulher.

 

O POVO: Você também está em cartaz com o espetáculo Preto, que fala da relação do brasileiro com a negritude. O País ainda precisa assumir o racismo?

Grace: A peça tem muitas questões. Ela tenta ser uma convivência através da linguagem teatral de pessoas que têm relações diferentes com a questão da negritude. O que a gente necessita hoje é produzir respostas mais concretas no combate ao racismo. É claro que, se a gente tem uma sociedade que não consegue sequer assumir-se racista, fica tudo mais difícil, porém mais do que assumir o racismo é necessário produzir respostas mais eficazes, afirmativas. Agir em relação ao racismo, agir contra ele. Isso significa muitas coisas, significa o Brasil tentar combater com todas as forças essa espécie de negrofobia social que existe na nossa sociedade. A questão não é nem se assumir, porque talvez isso seria fácil demais.

O POVO: No filme Praça Paris, atualmente em cartaz, você interpreta Glória, uma mulher que convive com a violência de várias frentes... do pai, da polícia. Por que é importante ter uma mulher com esse perfil como protagonista?

Grace: Eu sinceramente não acho que a escolha da Glória como protagonista na sua gênese tenha a ver com o fato de ela ser periférica, da favela carioca, mas o filme é resultado de muitas coisas e também da perspectiva de conseguir colocar desse tipo de mulher ali. Eu tentei ir além de determinados estereótipos que essa personagem poderia representar. Ela é uma mulher da favela carioca, vítima de violência do estado, de violência familiar, mas eu tentei fazer com que esse acúmulo de violência nessa personagem fosse um motivo para essa personagem. Tentei fazer com que ela usasse essa violência para ser mais inteligente, mais perspicaz e me preocupei muito em atuar fazendo parecer que ela tem consciência da dimensão da violência que ela foi exposta. Parece um detalhe, mas não é. Isso para mim foi decisivo em relação à representação dessa mulher nesse filme. À medida em que existe um peso, um acúmulo de violências que sempre se acumula em corpos como meu, corpos de mulheres que representam mulheres periféricas... Então, eu tentei de alguma forma, através da atuação, fazer com que parecesse que ela tenha consciência de que todas as violências que ela vivia ali não eram naturais. Tentei fazer com que essas informações fossem o motor para ela ser uma pessoa que, apesar de vítima de tantas violências, consegue viver plenamente e dignamente.

 

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