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Herdeiros do bel
Vida & Arte

Herdeiros do bel

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Desde cedo, nossos ouvidos são educados a ouvir música estrangeira e o que produz o eixo Rio-São Paulo, pelas rádios, pela TV e agora pelas plataformas digitais de música. Eu já tinha escutado algo, mas ainda não tinha percebido a importância da música cearense. Como a maioria de nossa geração, no trapézio de minha memória, também saltavam versos soltos dessas canções de sotaque local, “Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior...”, “Foi por medo de avião que eu segurei pela primeira vez a tua mão...”, “Se você vier me perguntar por onde andei...”, fragmentos de memória que nós, às vezes, cantávamos sem saber o restante das letras; até agora, com o movimento “Fora, Temer! Volta, Belchior!”.

[SAIBAMAIS]
Nessas comunicações da madrugada, em tempos de whatsapp, em fevereiro de 2016, começamos a gestar nossa homenagem: Alucinação estava completando exatos 40 anos naquele mês (o encarte original registra “fevereiro de 1976”). Estreamos exatamente nos dias 29 e 30 de abril de 2016, no espaço cultural 4 Portas na Mesa, em Sobral.
 

Consciente ou inconscientemente, o movimento “Volta, Belchior” orientou nossos olhares de novo para o que produzimos hoje; reavivou políticas culturais voltadas para a produção autoral e a circulação de obras já consagradas; misturou gerações, quando nos colocou para ouvir canções que embalavam o namoro adolescente de nossos pais, avós de nossos filhos. 

 

Nossos ídolos jamais seriam os mesmos: passamos a ouvir Daniel Groove e seu cancioneiro pessoal, a dançar o suingue de Lorena Nunes, a viajar com a voz etérea de Laya Lopes, as performances de Jonnata Doll, de Soledad, a obra-prima do juazeirense Dudé Casado, a enlouquecer com a sobralense Procurando Kalu, a sonhar com os arranjos celestiais do Cidadão Instigado, a nos arrepiar com as interpretações de Nayra Costa, de Quésia Carvalho.  

 

Como disse Claudinho Mendes, em entrevista para o Dragão do Mar, “estamos crescendo juntos, de mãos dadas”.
 

Belchior nos devolveu a nós mesmos, a nós e uma novíssima geração toda especial. Meus filhos, João, 13, e Júlia, 9; Lua, 7, filha do Robson, nosso violonista; Bento, 4; Tito, 6, e Moreno, 3; Elis, 5, e Isis, 3; Nise, 3, e Joaquim, 5; Amelie, 4; Laurinha, 2; e Belchior, 2, são filhos de amigos que já cantam longos trechos de cor dessas canções que muitos de nós, na idade deles, nem sonhávamos existir.
 

Belchior morreu um ano exato da nossa estreia, cravado no calendário. Hoje, completa-se um ano da sua partida definitiva. Em matéria. Mas Belchior não era mais uma pessoa, é uma ideia. “Vocês são aqueles rapazes da Trovador Eletrônico?”, perguntou Edna, companheira do cantor na última década. 

 

Encontramos com ela no velório dele, em Sobral; quando pudemos tê-lo conosco no palco - infelizmente, não como um dia sonhamos. Jotabê, o biógrafo, confirmou, “Bel ouviu o tributo que a Rolling Stone lançou sobre ele. É muito certo que ouviu os Trovadores!”. Eu caí em prantos, quando soube. Há pessoas na vida com que sonhamos um dia, quem sabe, poder compartilhar um café de manhã na padaria. Tenho duas xícaras na mesa, agora. Uma estará vazia pra sempre.  

 

Léo Mackellene
leomackellene@gmail.com
Escritor e vocalista da banda Trovador Eletrônico, de Sobral 

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