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Um mergulho na obra imagética da artista visual Maíra Ortins
Vida & Arte

Um mergulho na obra imagética da artista visual Maíra Ortins

A historiadora da arte Carolina Ruoso conversa com a artista visual Maíra Ortins sobre a presença do mar, dos deslocados e dos esquecidos em sua produção imagética
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Olá, tudo bem?


MAÍRA,

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Escrevo para você para continuar a série de cartas-entrevistas que estou escrevendo para o Jornal O POVO. Te convido para esse diálogo, que será dedicado ao seu trabalho Khôra. Você aceita o convite? Nós duas nos conhecemos em 2008, quando retornei à Fortaleza, depois de uma primeira temporada em Recife. Nessa época, lembro que você me contou a sua experiencia na Escolinha de Arte de Recife. A Escolinha foi criada por Noemia Varela em 1953, inspirada no projeto das Escolinhas de Arte do Brasil, fundado em 1948 no Rio de Janeiro. Essa escola teve um papel importante na sua formação em artes, você poderia contar um pouco dessa experiência? Continuamos falando a respeito da sua formação em artes. O Mauc (Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará) ocupou um lugar de destaque, você foi bolsista e participou da oficina de gravura, nos fale dessa aproximação com os mundos da arte em Fortaleza. Você é formada em Letras pela UFC, seu processo criativo produz um diálogo importante entre literatura e artes visuais — como você elabora essa aproximação? Como essa relação impactou seu trabalho? A experiência com literatura e de deslocamento irá te aproximar do mar. Um mar que parece carregar também dimensões da memória na sua poética, vestígios desconhecidos, estes vestígios são um caminho para chegar nessa pesquisa sobre imigração. A Mulher Abissal, nesse oceano, entre azuis, faz-se estrangeira e aos poucos ganha máscaras em meio às paisagens e, entre desconhecidos, desenha solidão passageira. Pesquisar imigração em seu processo criativo traz algo de autobiográfico? Quem é essa Mulher Abissal, essa mulher que se mantém altiva apesar de tudo? Esse peixe que ela carrega, que ela embala? É filho-peixe? É memória? Essa mulher de branco que carrega nos olhos as marcas das águas? Água-lágrima-água-mar. Mulher do mar ao mar, com seu peixe no colo. Seu peixe-ausência. Seu peixe-lembrança. Do mar às fronteiras, do mar às cercas, imigrantes e flagelados. Pensar na invenção do Nordeste seria pensar na fabricação dos retirantes, daqueles que se retiram? Os retirantes habitam a Khôra? Você chegou integra na Khôra, o campo de concentração de Senador Pompeu. Esse olhar para os retirantes, para este campo de concentração em ruína dialoga com os imigrantes europeus, nos mostra que temos todos uma memória coletiva em comum, uma dor comum nas nossas histórias. E é Judith quem viaja o mundo, se coloca mascarada ao lado das pessoas sem nome, migrantes, conectando passado e presente, territórios e experiencias. Quem é Judith?


Abraço,

Carolina 

 

Carolina Ruoso é historiadora da arte.


 

Agradeço imensamente o convite

 

Carolina

 

Fez-me voltar ao passado. E começo a minha resposta agradecendo a Dona Noemia, obrigada! A Escolinha de Arte do Recife é uma escola antiga. A peculiaridade pela qual cheguei a esta escola é que faz desta formação algo extremamente importante para mim. Eu vivia em uma zona muito pobre na periferia de Jaboatão dos Guararapes, e, obviamente, nunca tinha ouvido falar desta escola. No primeiro momento mandaram eu me retirar, mas uma senhora levantou-se e perguntou porque eu fazia arte, eu respondi com simplicidade, porque eu gosto. O que Dona Noêmia viu em mim não foram as palavras, mas o que provavelmente eu disse com os olhos. Na mesma hora Dona Noêmia ordenou à secretária que me matriculasse. A partir daquele dia eu era a mais nova bolsista da Escolinha de Arte do Recife.


Em Fortaleza, o meu primeiro espaço de formação foi o Mauc. Durante anos, foi lá que tive espaço para aprender. O Instituto Dragão do Mar era ótimo, mas de difícil acesso para muita gente. No Mauc eu tive a oportunidade de estudar gravura, e quem muito me ajudou foi Nauer Spíndola, que nem era do corpo docente do Museu, mas sempre frequentava a oficina de gravura. Foram três anos de aprendizagem, desde gravura até montagem de exposições e princípios básicos da fotografia. Foi um momento importante. Pedro Eymar oferecia cursos e nos acompanhava dando aulas de desenho, pintura e nos passava muitos livros de arte.

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Carolina, a literatura sempre me fascinou e foi certamente quem muito me ajudou nas pesquisas e no desenvolvimento de projetos que hoje trabalho. O mar entra como esse novo lugar possível e impossível. Surgem seres míticos, uma beleza do ventre azul, melancólica, refletindo o mundo atual, na ânsia de escapar, pois pelo mar vamos ao outro lado e cruzamos ou nele nos afogamos. O mar é aquele lugar que não se pode habitar, é um lugar de passagem, por isso surge o Khôra, etimologicamente a palavra diz sobre a pólis, o lugar fora, o intervalo. A experiência do deslocamento para Fortaleza, e que aqui tive que me adaptar, e logo depois, indo e vindo a outras cidades e países, perdi muito do que tinha como referência de raiz, origem, daquela tão reverberada do lugar de onde vim. Ressignificar estas memórias, saber entender-se e seguir em frente foi o que fiz.


Abissal é um projeto antigo, teve início em 2012. Em 2011 eu apresentei uma exposição em Barcelona intitulada Das intimidades do mar. Na exposição havia toda a ligação com seres míticos, fotografias manipuladas com cera e toda uma etimologia própria, o mar empacotado, um mapa para Pasárgada, abaixo dos olhos micro-ondas azuis. Porém eram fotos, havia a limitação do que já havia. Senti a necessidade de performar a ideia e eis que surge a criatura abissal, uma mulher vestida de branco, que vem das estórias de Rio Formoso, pequena cidade em Pernambuco, na qual se contava a lenda de uma tripulação fantasma, cuja embarcação ainda colonial naufragara entre o mangue e o mar, próximo de uma grande pedra rodeada de água. Contava-se que a cada cem anos surgia uma mulher de branco procurando um pescador para encantar. Entrelacei a cultura popular e a crença em sereias, mulher pele de foca, criaturas reais do fundo do mar com Iemanjá e compus a personagem. A partir daí fazia a personagem percorrer o mundo, desde Frankfurt até o deserto Siloli na Bolívia.


É isto. Uma mistura entre o universal imaginário dos mistérios do mar, que vão desde as reais criaturas abissais até o universo barroco colonial do imaginário popular brasileiro. A mulher de branco, a embarcação que retorna ao ponto donde afundou a cada cem anos, a pequena ilha rodeada de mar em Rio Formoso, conservada até hoje por conta da superstição de ser mal-assombrada pelo navio. Mas, sobretudo, ela é um arquétipo daquele que perdeu seu lugar, que busca incansavelmente, mas não encontra.


Eu trabalho com o imigrante de modo geral, com o excluído, o deslocado, o fora de lugar. Achei que a trágica história dos Campos no Ceará relatava a memória dessa exclusão, dessa dor. Uma dor que para mim é universal, que chega em todos e que é muito similar àquela dos refugiados ilhados em botes precários à deriva, neste caso com uma única diferença: o segundo tem publicidade na mídia e o primeiro foi durante longos anos esquecido. Por isso a série dos Campos se chama Judith: tudo isso era sobre solidão. Porque aqueles que morreram eram invisíveis sociais, estavam à margem, portanto, sua dor não tinha voz. Foi mesmo uma barbaridade o que aconteceu e o que segue acontecendo, porque a História se repete hoje nas periferias do Brasil. Os jovens que não possuem o direito de envelhecer também são estes personagens invisíveis cuja dor não tem voz.


Judith não é uma heroína. Ela está sempre inerte à situação. Algo que soa estranho, ela quase faz uma selfie diante da dor. Mas ela não aparece, incógnita ela revela o estranho ao redor. Personagens que seguem a vida sem pensar sobre, como na longa série feita em Barcelona com imigrantes de toda a parte do mundo, com seus comércios e sua vida quase exclusivamente ligada ao trabalho.


Porque o imigrante é útil, ele trabalha, ele produz, ganha pouco e permanece sem estar. Não se integra totalmente, perde-se em si, porque não mais pertence ao que já foi e jamais será igual ao que sempre está. Foi o que percebi em Barcelona, em Roma, em Budapeste, em Valência, em Frankfurt, em Berlim... há um isolamento. Existe uma comunidade em cada cidade dessa, para cada nação de emigrados, e este é o lugar deles, este intervalo, um Khôra, habitantes que já não pertencem a nada que não seja estar sem ser exatamente dali.


Abraços,

Maíra

 

Maíra Ortins é artista visual.

 

 

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