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Helena Ignez fala ao V&A sobre maternidade, feminismo e preconceito
Vida & Arte

Helena Ignez fala ao V&A sobre maternidade, feminismo e preconceito

| HELENA IGNEZ | Já conhecida como um dos símbolos do cinema nacional, conversamos com a diretora sobre outros assuntos desafiadores e que ela domina muito bem: maternidade, feminismo e preconceito
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Quando protagonizou o filme A Mulher de Todos, em 1969, Helena Ignez já apontava para o caminho que seguiria ao longo da carreira: realizar um cinema audacioso transpondo os limites do corpo, da imagem, do machismo e das inseguranças. À época, ela tinha 27 anos e já havia sofrido dores difíceis de verbalizar. O casamento com o lendário diretor Glauber Rocha havia acabado. Quando ainda nem era utilizada a palavra divórcio no Brasil, Helena passou a carregar o carimbo de “mulher desquitada”. Com termos judiciais diferentes vigorando no País, ela não podia ter a guarda de sua filha - Paloma Rocha, hoje diretora e produtora de cinema.


Mesmo submersa nos turbilhões emocionais, Helena Ignez se tornou um símbolo do cinema marginal. Criou como diretora, estrelou produções como atriz, experimentou novos formatos audiovisuais e múltiplas linguagens. Hoje, aos 75 anos, segue em uma rotina de trabalho intensa. As viagens para os Estados Unidos e para a Europa - onde participa de festivais e realiza palestras - são constantes e deixam os dias inquietos. Mas são nesses momentos de travessia que Helena se sente mais imersa em um de seus maiores prazeres: a escrita. “Escrever é um privilégio de Deus”, ela diz, contando que se dedica a rabiscos e ideias gravadas no papel. “Uma hora vira projeto ou roteiro”. Além disso, ela dirige seus próprios filmes e aparece em produções alheias.


Em uma de suas passagens por Fortaleza, a cineasta conversou com o Vida&Arte. A entrevista foi feita poucas horas antes dela exibir seu novo filme, A Moça do Calendário - no cinema do Centro Dragão do Mar. A produção, feita entre 2016 e 2017, é baseada em roteiro deixado pelo cineasta Rogério Sganzerla. Com ele, Helena viveu um casamento de 34 anos e após sua morte, em 2004, ela herdou um legado de textos, produções, anotações e materiais que - segundo a diretora - ainda vão frutificar muito. Juntos, além da parceria e do espólio audiovisual, Rogério e Helena também tiveram duas filhas: Djin Sganzerla e Sinai Sganzerla.

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A rotina de estudos intensa inclui também assistir às novas produções do cinema brasileiro. E a diretora de 75 anos gosta do que está sendo feito atualmente. “Aliás, nos últimos tempos, eu praticamente só estou trabalhando em produções de diretores jovens. Tenho feito muitos curta-metragens”, aponta. Do Ceará, ela cita como preferidos os trabalhos da produtora de filmes independentes Alumbramento e dos diretores Leonardo Mouramateus, Karin Ainouz, Bárbara Cariry e Petrus Cariry.


Famosa por uma beleza incomum, Helena Ignez participou de produções que dividiram a história do cinema nacional: O Padre e a Moça, O Grito da Terra, Copacabana Mon Amour, Um Intruso no Paraíso, A Bela P..., Jetlag, Nem Tudo é Verdade, Carnaval na Lama, Cuidado Madame, A Mulher de Todos. A trajetória já rendeu diversas honrarias em festivais, menções honrosas, premiações por filmes. “Homenagens não faltam, quero ganhar é patrocínio”, brinca. 

 

O POVO - O Brasil vive tempos de polarização e os artistas apontam censura a exposições, filmes e outros objetos estéticos. Qual caminho deve ser percorrido pela arte?


Helena - O que está acontecendo agora é uma onda muito grande de puritanismo religioso e excludente. A direita está muito forte, está se expressando muito. As redes sociais ajudaram também. Elas ficaram todas evidentes, nós todos ficamos mais evidentes. Acho que é um momento de ser sincero. E mostrar que a arte deseja é o sublime, é desmanchar o que há de sórdido, o que há de diferença.

Então, é uma arte política. E é ela exatamente que está sendo de uma certa forma prejudicada. É ela que está sendo visada. Não só a arte como a filosofia. É um momento estranho. Eu concordo, sim. Tem um lado muito careta. Outro, não. Nunca o movimento feminista esteve tão forte, tão atuante.


O POVO - A senhora se considera um ícone do feminismo?


Helena - Não um símbolo, mas uma lutadora. Muito mais do que um símbolo! Talvez pela minha história, pelas personagens que interpretei, pelas minhas declarações, pela minha atuação na mídia, eu seja um símbolo. E também porque, realmente, venho nesse debate desde muito tempo.


O POVO - A senhora foi casada com dois diretores de cinema muito importantes: Glauber Rocha e Rogério Sganzerla. Em algum momento ficou na sombra deles ou foi, de certa forma, colocada lá?


Helena - A sociedade sempre faz isso. Principalmente a sociedade de 20 ou 30 anos atrás. Completamente machista e patriarcal. Eu fui uma mulher desquitada muito jovem. Nem era divorciada. Era o desquite que havia no Brasil. E negava toda a condição a mulher. Ela não podia assinar nada, era totalmente dependente do homem.

Imagine com essa mentalidade… Existia e vinha forte, de todos os lados, um preconceito muito grande. Com toda a mulher que quisesse viver livremente.


O POVO - O preconceito foi determinante para a sua saída de Salvador após a separação do Glauber?


Helena - Tem a ver sim com a saída da Bahia. Era impossível ficar lá.

Não apenas eu. O Glauber também. Os dois migraram para o Rio de Janeiro, em 1963. Eu tinha 23 anos. Foi uma decisão de mudança de ambiente, de menos peso hipócrita, de menos peso preconceituoso da sociedade de Salvador. Era terrível. Eu tinha experiência com o lado da alta sociedade baiana, o high society. Do circuito social mais elegante de Salvador e um dos mais elegantes do Brasil. Salvador era muito chique também. Mas esse chique, exatamente, era mantido pela hipocrisia. Inacreditável! Apesar daquelas pessoas serem de convívio agradável, serem as mais inteligentes de Salvador, serem as pessoas que tinham um mínimo de interesse pela arte ou qualquer coisa parecida, mas essas mesmas pessoas eram uma elite de atraso.


O POVO - Após a separação de Glauber Rocha, a senhora não foi autorizada a ter a guarda de sua primeira filha, Paloma Rocha. Esse foi um período de adaptação...


Helena - A maternidade foi forte e é forte. Ela determinou vários tipos de comportamento. Com Paloma (filha do casamento com Glauber Rocha), por exemplo, para poder criá-la e estar perto de mim… Eu perdi a guarda dela e o direito de tê-la, judicialmente.

Então, existiu uma forma minha de adaptação para poder vê-la sempre ou quase todos os dias. E num ambiente que não era o meu.

Era um ambiente patriarcal, forte. Amoroso com ela, mas era patriarcal. Eu era a mulher. Não tinha nenhuma força.


O POVO - E uma mulher artista…


Helena - Ainda por cima! Exatamente por ser artista! Foi um dos primeiros argumentos: eu não poderia criar a minha filha por ser artista e por ter uma profissão instável. Então, ela iria ficar com a avó paterna, pois era um ambiente mais estável. Isso determinou a minha vida. Como também determinou muito o nascimento das outras duas filhas (Djin e Sinai Sganzerla). Me deu uma vontade de isolamento e de ficar junto o tempo todo. De ter vivência de maternidade muito grande. Eu quis ter essa experiência.


O POVO - A maternidade foi fonte de sofrimento em alguns aspectos?


Helena- Eu acho a maternidade perigosa de se falar. Porque ela também é uma instituição, como o Papai Noel. É como se as mulheres precisassem da maternidade para serem felizes. Existem muitas crianças que estão abandonadas e elas podem suprir perfeitamente o amor e a necessidade de afeto, de criar o outro. Eu acho exagerada essa postura da mulher ter obrigação de ter um filho e de ter uma dedicação integral. Isso já vem da antiguidade com o valor da mulher como reprodutora. Os homens têm a liberdade de não quererem ser pais. Isso não é dado às mulheres. Elas ainda são vistas com preconceito.


O POVO - Suas três filhas trabalham com arte. Sinai Sganzerla é diretora e produtora, Djin Sganzerla é apresentadora e atriz, Paloma Rocha é diretora de documentários e produtora audiovisual. Fazer a atividade artística chegar até as meninas foi uma preocupação?


Helena - Engraçado. Eu nunca incentivei. Elas naturalmente foram e quando eu vi, já era! (risos). Minha relação com minhas filhas é muitíssimo prazerosa. Mas eu acho até egoísta falar assim. Porque nem todas as mulheres podem ter isso. Eu vejo que a maternidade é um ponto extremamente delicado para ser repensado nas mulheres.

Por delicadezas e por estar havendo um número grande de infertilidade. As jovens gerações estão vindo com a possibilidade de ter muito menos filhos. Então, eu sinto que, às vezes, uma dessas meninas pode se sentir inferiorizada ou defeituosa. Mas não acredito é uma obrigação ser mãe. Tem muita gente que não quer.

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