Sabe aquela sensação chata de uma mosca rondando perto do ouvido quando você quer dormir? Pra piorar, quando você acende a luz pra pegar a bandida, quase nunca a encontra. Basta voltar ao escuro, que aquele som agudo volta a rondar seu juízo. Curiosamente, foi esse som que inspirou uma valsa composta em 1962 por Jacob do Bandolim. Com um volume enorme de notas tocadas de forma veloz e cadenciadamente, o Voo da Mosca ainda é uma valsa que só os instrumentistas experientes – ou audaciosos – têm coragem de encarar.
A valsa, que chega a desenhar um sobe e desce constante, tal qual o voo daquele bichinho insistente, é mais uma mostra da capacidade de Jacob Pick Bittencourt como compositor e instrumentista. Filho do capixaba Francisco Gomes Bittencourt com a polonesa Raquel Pick, ele nasceu em 14 de fevereiro de 1918, no Rio de Janeiro. Próximo à janela de casa, ele costumava ouvir um vizinho tocando violino. Impressionado, tentou aprender o instrumento, mas não conseguiu. Acabou ganhando, aos 12 anos, um bandolim, formato napolitano, tipo cuia. Os dedos ficaram destruídos, mas ele aprendeu a dominar as cordas.
Autodidata, Jacob chamou a atenção de veteranos. Em 1934, venceu um concurso da rádio Guanabara, derrotando 28 concorrentes. No júri constavam nomes como Benedito Lacerda e Francisco Alves. O sucesso deu partida numa carreira que foi abrindo novas portas. Realizava rodas de choro, tocou com gigantes da época e foi contratado da Rádio Nacional. Ainda assim, a vida de artista nunca foi fácil. Por sugestão do amigo Donga, prestou concurso público e assumiu o posto de Escrevente Juramentado da Justiça do Rio de Janeiro.
A vida de funcionário que bate ponto não afastou Jacob da música. Muito pelo contrário. Fez uma primeira gravação pela gravadora Continental em 1947, com as faixas Glória e Treme-Treme. “Espero que com a nova fábrica RCA meus discos sejam postos à venda em tal quantidade, que até nas lojas de cutileiro estarão expostos ao lado de faquinhas, facas e facões”, escreveu para um amigo depois de mudar de gravadora. E foi pela RCA que foi lançado, em 1967, o primeiro disco do Época de Ouro, conjunto que fundou três anos antes ao lado de nomes como César Faria (pai de Paulinho da Viola), Dino 7 Cordas, Jorginho do Pandeiro e outros, e que se mantém ativo ainda hoje.
Jacob viveu pouco, apenas 51 anos. Faleceu em 13 de agosto de 1969, nos braços da esposa, de um infarto fulminante. Ele estava chegando em casa, depois de visitar Pixinguinha, com quem queria conversar sobre um sonho antigo: Jacob queria gravar um disco só com composições do amigo .
“Foi o cara que modernizou o choro, trouxe elementos de outros estilos. Noites Cariocas usa elementos jazzísticos, como arpejos diferentes e dissonâncias”, analisa Mimi Rocha. Para o guitarrista cearense, a capacidade que o bandolinista teve de sair do choro tradicional é o que marca sua obra. “Assanhado tem uma cadência meio blues. É como se um fosse um blues na primeira parte, depois algo meio clássico. Samba Morena é um flamenco, usa aquelas escalas espanholadas. Nada disso era comum no choro da época e ele tinha essa bagagem do jazz e do erudito”.
“Todo bandolinista do Brasil, de muitas garações, foi influenciado por ele. É um grande melodista, um grande compositor, criou uma forma de tocar bandolim. Tinha um quê de jazz”, destaca o bandolinista Carlinhos Patriolino. No livro Choro, Do Cavaquinho ao Municipal (Ed. 34, 1998), Henrique Cazes, desvenda as influências. “Quanto à maneira de tocar, penso que três elementos foram decisivos para que Jacob sedimentasse seu estilo. O primeiro foi a natural influência dos solistas em voga na primeira metade da década de 1930, principalmente Luiz Americano e, em menor proporção, Benedito Lacerda. O segundo foi o contato que teve com músicos portugueses, de onde tirou os ornamentos de sua interpretação. E, finalmente, o terceiro foi o contato e a confessa admiração por Cincinato do Bandolim (tipo malandro e músico virtuoso, que tocou bandolim ao lado de Pixinguinha)”.
“Ele levou o gênero choro para outro patamar”, avalia o músico Cainã Cavalcante, admirador confesso de Jacob do Bandolim. Citando Doce de Coco e Cadência entre suas composições preferidas, o violonista cearense não refuta a influência de estilos como o jazz na obra do carioca. “Hoje em dia, percebemos alguns traços, alguns trechos de música. Frases incomuns para o instrumento e para o gênero. Mas não sei até que ponto o Jacob tinha consciência disso”.
MEMÓRIA
Além de músico, Jacob foi um pesquisador de ritmos, em especial do choro. Esse trabalho hoje é preservado pelo Instituto Jacob do Bandolim. Mais informações: www.jacobdobandolim.com.br
Para ouvir Jacob:
IN MEMORIAN
Muitas coletâneas reúnem gravações originais de Jacob do Bandolim, inclusive disponíveis em streaming. Uma delas é da série In Memorian, com 14 faixas, com destaque para André de Sapato Novo e Ingênuo.Tem ainda um box triplo lançado em 2000 pela Sony Music, com 56 músicas e um livro biográfico ilustrado.
CAFÉ BRASIL
Para iniciantes, os dois volumes de Café Brasil, do Época de Ouro, fazem um apanhado do choro, juntando tradição, modernidade e convidados. Leila Pinheiro brilha em Jamais, Ademilde Fonseca demarca terreno em Galo Garnizé, e Arlindo Cruz e Sombrinha se divertem em Santo Forte. Lobão faz bonito em Chorando no Campo.
AO VIVO NO TEATRO JOÃO CAETANO
Elizeth Cardoso, Zimbo Trio, Jacob e o Época de Ouro. Esse time de estrelas se encontrou em fevereiro de 1968 para um recital em prol do Museu da Imagem e do Som. Testando variadas formações, o resultado é uma das mais belas gravações da história da MPB pautada pela informalidade.