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Um olhar feminino para a ficção científica
Vida & Arte

Um olhar feminino para a ficção científica

Mulheres cobram lugar de destaque desde os primórdios da ficção fantástica. Conheça autoras que ajudaram a definir e reinventar as bases do gênero
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Quando o assunto é literatura de ficção científica, um breve exercício de memória nos remete facilmente a alguns autores: Anthony Burguess e sua Laranja Mecânica que virou filme, Ray Bradbury e o Fahrenheit 451 que nos deixou com medo que todos os livros queimassem numa fogueira, William Gibson e seu Neuromancer que inspirou a trilogia Matrix nos cinemas, além de Philip K. Dick, que a partir do livro Andróides sonham com ovelhas elétricas? guiou o roteiro de Blade Runner. A lista é extensa e, impossível não observar, predominantemente masculina.

[SAIBAMAIS]

Não que as mulheres não escrevam. Apesar da presença massiva dos homens nos holofotes, a ficção científica enquanto gênero literário teve início pelas mãos de uma mulher. Foi a escritora britânica Mary Shelly que, em 1818, publicou o romance Frankenstein, a primeira obra de ficção científica da história. Desde então mulheres se valem do universo metafórico e distópico da ficção para fazer crítica social e tratar de temas tais como feminismo, política, sociedade, poder, religião, sexualidade e raça. Fazem da literatura um exercício de imaginação do futuro baseado em fatos e contextos do presente.


Entre as autoras mais notáveis de sci-fi está Ursula K. Le Guin, que escreveu o aclamado A Mão Esquerda da Escuridão, livro que usa as possibilidades da ficção científica para tratar relações psicológicas e sociais. O trabalho de Úrsula foi influenciado por grandes nomes, tais como Neil Gaiman, Emily Bronte, Virgínia Woof, J.R.R.Tolkien e Liev Tolstói. No entanto, Úrsula e tantas outras ainda são fatia pequena nos catálogos das editoras e, consequentemente, nas pilhas de livros dos leitores.


A mediadora do Clube Leia Mulheres em Fortaleza, Alessandra Jarreta, conta que lia Isaac Asimov, Arthur C. Clark e H.G.Wells, a tríade clássica da ficção científica, quando notou e se incomodou com a ausência de personagens femininas nas obras. “No Asimov as personagens femininas ou não existem ou são extremamente estereotipadas. No primeiro livro da série Fundação, por exemplo, um livro que retrata uma sociedade futurista, tem uma única mulher, uma recepcionista sem nome e sem fala, que é apenas citada num breve trecho da história”, diz. A partir desse incômodo Alessandra buscoumais autoras dentro do gênero, e notou que, apesar do volume grande de escritoras, obras e prêmios, poucas delas chegavam traduzidas ao Brasil e quando chegavam não tinham a mesma visibilidade das obras escritas por autores.


O publisher da editora Morro Branco, Victor Gomes, responsável pela vinda da obra inédita da autora de sci-fi Octavia Butler para o Brasil, conta que trazê-la para o mercado local foi uma forma de “corrigir” a ausência feminina nos catálogos de ficção científica. “Escolheu-se uma mulher negra que tratasse de temas contundentes como feminismo e poder. Mas vale dizer que infelizmente essa ausência feminina nos catálogos não é privilégio do mercado brasileiro. A Octavia em si teve problemas para ser uma escritora de qualquer tipo. Era pobre, negra e sua própria família lhe afirmava que “negros não poderiam ser escritores”. Mas mesmo depois de conseguir superar os obstáculos e lançar suas primeiras obras, ainda era comumente colocada na categoria de “literatura negra” e não “ficção científica”. Hoje ela é citada como “A Grande Dama da Ficção Científica”.


O editor do site Tapioca Mecânica João Gabriel Rangel Fraga, também destaca a preferência do mercado editorial pelos autores. “A maior responsável pela publicações de ficção científica no Brasil é a editora Aleph, que possui bem poucas autoras no catálogo”, lamenta.


A editora da Aleph, Bárbara Prince, explica que a masculinização da arte não é exclusiva da literatura de ficção científica. “Historicamente, foi dada aos homens muito mais voz e poder de fala do que às mulheres. Essa divisão está estabelecida de tal forma que tendemos a considerar que as histórias contadas por homens são histórias universais, enquanto as contadas por mulheres são de interesse apenas das mulheres”. Ela esclarece ainda que a atenção à escrita das mulheres e a conscientização da importância de ler mulheres são recentes no mercado leitor, mas que essa crescente demanda tem influenciado diretamente o catálogo da editora. “Além das quatro autoras que já publicamos temos planos de trazer ainda mais. Neste semestre lançaremos Justiça Ancilar, da Ann Leckie, que ganhou todos os prêmios mais importantes do gênero. A obra traz muitas inovações para a ficção científica, e ainda questiona vários preconceitos de gênero”, conclui.


No Brasil, apenas em 2013 houve iniciativa feminina para escrever ficção científica. As escritoras e blogueiras Lady Sybylla e Aline Valek juntas organizaram Universo Desconstruído, a primeira coletânea de contos de ficção científica feminista. Nesse contos são criados mundos futuristas que criticam machismo, racismo, homofobia, transfobia, preconceito com literatura produzida por mulheres, aborto e igualdade de gênero. O livro é distribuído gratuitamente pela internet. Depois dele Aline Valek lançou As Águas Vivas Não Sabem de Si, único livro nacional com nuances de ficção científica escrito por uma mulher, lançado em 2016 pela editora Rocco.


MULHERES QUE ESCREVEM FICÇÃO CIENTÍFICA


Octavia Butler

A autora norte-americana foi a primeira autora negra de ficção científica a ser reconhecida mundialmente. Escreveu contos, ensaios e 15 romances. Recebeu mais 20 indicações e prêmios, entre eles Nebula e Hugo — duas das mais prestigiadas comendas da literatura de ficção científica e fantasia. Seu principal romance, Kindred, foi publicado no Brasil em 2017 pela editora Morro Branco. O livro já vendeu mais de meio milhão de cópias desde o lançamento, o que tornou Octavia Butler conhecida como a “Grande Dama da Ficção Científica”.

 

Mary Shelley

Nascida em Londres, Mary Shelley foi pioneira na ficção científica antes mesmo da consolidação do gênero literário. Seu livro mais conhecido é Frankenstein, publicado em 1818 e adaptado posteriormente para teatro, cinema e televisão.

O livro conta a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais cria um ser consciente. Victor passa a rejeitar a criatura, que passa a odiá-lo e aterrorizar seus familiares.


Suzanne Collins

A escritora norte-americana Suzanne Collins escreveu a série Jogos Vorazes, que um best-seller infanto-juvenil que se passa em um futuro distópico onde adolescentes são forçados a participar de um jogo de vida ou morte transmitido pela televisão.

Ursula K. Le Guin

A Mão Esquerda da Escuridão é sua obra-prima. Foi a primeira mulher a conquistar Hugo e Nebula, os maiores prêmios do gênero. Aborda os temas da sociologia, psicologia e anarquia em suas obras. Faleceu no último dia 22.

 

Margaret Atwood

Temas como a opressão sofrida pelas mulheres, fundamentalismo religioso e política estão em O Conto da Aia, romance distópico lançado em 1985, que voltou aos holofotes em 2017 ano após ser adaptado para a TV. Considerada uma das principais autoras contemporânea em língua inglesa, a canadense tem títulos aclamados não só dentro da ficção científica. Tem mais de 50 livros publicados, entre contos, poesias, títulos infantis e de não-ficção.

 

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