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Os limites entre autor e obra a partir do caso de Woody Allen
Vida & Arte

Os limites entre autor e obra a partir do caso de Woody Allen

A partir das denúncias de assédio contra Woody Allen, análise revisita casos históricos em que obra e artista se confundiram, seja para atacar a obra, seja para expor condutas criminosas do artista
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Era fevereiro de 1857. Levado a julgamento sob a acusação de ofensa à moralidade pública, o escritor francês Gustave Flaubert defendeu-se: “Emma Bovary sou eu”. Autor de Madame Bovary, romance que havia assanhado os pruridos da bourgeoisie parisiense no XIX ao narrar as desventuras de uma mulher infeliz no casamento, Flaubert saía em defesa de sua personagem borrando as fronteiras entre ficção e realidade. Ali, obra e artista fundiam-se numa mesma instância. A voz de Emma era a do seu criador e vice-versa. Donde a confusão: a quem responsabilizar?


Golpe retórico que o livrou da condenação, o expediente de Flaubert, entretanto, seria evocado inúmeras vezes nas décadas seguintes, agora não mais na tentativa de conjugar invenção e real num mesmo espaço criativo, mas de separar radicalmente a figura do autor e suas produções.


Foi o caso do escritor Louis-Ferdinand Céline, de cujo gênio resultaram tanto a obra-prima Viagem ao fim da noite (1932) quanto os panfletos anti-semitas escritos nos anos que se seguiram à publicação do livro - na quinta-feira da semana passada, a editora francesa Gallimard, que detém os direitos sobre o escritor, informou que, no atual contexto, não republicaria parte dos trabalhos de Céline.


O mesmo se deu com o filósofo e escritor alemão Martin Heidegger, autor do seminal Ser e Tempo, obra que influenciaria pensadores como Sartre, Jaspers e Arendt. Reitor da Universidade de Freiburg nos anos que antecederam a ascensão do nazismo, Heidegger foi intenso colaborador do regime, oferecendo as bases filosóficas do “hitlerismo”. Sua contribuição ao campo do pensamento, porém, ultrapassava as simpatias pelo Führer.


O exemplo mais recente é o do diretor de cinema Woody Allen, 82, alvo de acusações de assédio desde que a ex-mulher Mia Farrow afirmou que ele abusara sexualmente da enteada, denúncia confirmada pelo filho biológico do casal, Ronan Farrow, hoje um ativista contra a violência. De lá pra cá, a obra de Allen passa por revisão crítica que prioriza em sua análise não categorias estéticas, mas éticas. O boicote a sua filmografia, então, é parte de uma estratégia política que se impõe ao laissez faire até então dispensado ao artista: tudo pode, tudo faz, tudo é liberado.


O protesto de atrizes na cerimônia do Globo de Ouro no último domingo é apenas índice de uma nova configuração social na qual a figura do autor e sua obra, historicamente imbricadas, mas não de todo confundidas, passam a ser compreendidas sob a mesma chave.


Se a qualidade dos seus filmes não isenta Allen, tampouco sua conduta individual desautoriza o reconhecimento do seu gênio artístico. É nesses limites que uma nova leitura da arte se estabelece: sem fossos entre ética e estética.

 

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