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Conheça as histórias da geração de punks que incendiou Fortaleza
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Conheça as histórias da geração de punks que incendiou Fortaleza

| COMPORTAMENTO | Inspirados na geração que incendiou as ruas de São Paulo nas décadas de 1970 e 1980, os punks de Fortaleza protagonizaram uma história de música, drogas, raiva e morte
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Em meados dos anos 1980, quando circulava por Fortaleza em busca de lugares para tocar com a Grillus Sub, Maurilo Landim, o Grilo, foi abordado por um policial militar. As “gerais” eram frequentes contra os grupos que vagavam de madrugada pela Cidade. Mãos pra cima, revista à procura de drogas. Nessa noite, Grilo levava pendurada à jaqueta uma seringa sem agulha, adornada com um pedaço de papel no qual se lia “diga não às drogas”. Quando o guarda, convencido, deu meia volta, Grilo abriu a jaqueta e riu com os amigos - os bolsos internos estavam cheios de baseados.


Mas essa não era a sorte de todos os dias. “Naquela época, era todo fim de semana. Ou a gente era preso quando saía de casa ou quando saía da festa. Se eles olhassem o visual punk, prendiam na hora. A gente, que era do Monte Castelo, eles levavam pra delegacia do Conjunto Ceará, só pra gente voltar pra casa andando, porque nenhum motorista de ônibus parava pra gente. Às vezes, durante a caminhada, a gente era preso de novo por outra viatura”, conta Grilo, que se define, com alguma hesitação, como o único dos punks pioneiros que ainda está na ativa.

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A Grillus Sub surgiu em 1984, no rastro de outras bandas punk que se revezavam pelo circuito de clubes da periferia de Fortaleza. A primeira delas foi a Repressão X, logo seguida por outras como a Zoeira (a primeira com mulheres na formação), a Estado Mórbido, a HLV3 e a Resistentes Armadas. Na contramão do rock burguês que agitava Brasília, o punk fortalezense, inspirado no movimento paulistano, recrutou seus membros na periferia e círculos operários, quando os clubes de dança passaram a dedicar alguns minutos de suas noites ao ruídos chegados da Inglaterra dos Sex Pistols e The Stooges.


Nascida em uma família de classe média, exceção entre os punks, Flor Fontenele fugiu da família aos 12 anos, incentivada pela moça que cuidava da faxina em sua casa. “Ela me levava pra favela Verdes Mares, e lá eu conheci a Guacira, uma menina que curtia rock, Led Zeppelin, Deep Purple. Tinha fotografias recortadas do Robert Plant”, conta.


O rock clássico pouco a pouco deu lugar à agilidade do punk inglês.

As camisas de bandas foram trocadas pelas roupas rasgadas, as calças justas e os acessórios de couro. Os cabelos eram lambidos.

“Os punks não dançavam as coisas que a gente dançava. Nem tinham o mesmo visual. Eles eram “ramonistas” enquanto a gente ainda estava no Motörhead. Eu perguntava ‘o que diabos é essa gritaria, macho?’, mas de tanto ouvir, eu começava a entender. E aí fui me embandeirando pra aquele lado, gostei daquilo”, relembra Flor.


Para garantir a independência dos pais, Flor vendia aranhas (fármaco comercializado como Artane) na porta dos clubes onde rolava o agito jovem, as discotecas new wave - comprava um tubo com 100 comprimidos, dividia entre quatro punks e “saia vendendo pra ganhar dinheiro e pagar o nosso”. Em uma dessas noitadas, conheceu o rapaz que seria o ápice e o fim do movimento punk em Fortaleza. “Na porta de um dos clubes tinha um cara que eu sempre via, todo rasgado, todo esmoler. Ele puxou conversa, me deu altas duras porque eu tava metida com os traficantes. Perguntou se eu curtia punk e me levou pra um ensaio no Henrique Jorge”.


Esse homem era Dedé Podre, o principal nome do punk em Fortaleza na década de 1980. “Fui ao ensaio e comecei a virar punk. Eles me ensinaram a tocar baixo, e logo montamos a primeira banda feminina”. Distante da família, Flor encontrou abrigo nos outros desajustados que orbitavam em torno de Dedé. “Eu não podia voltar pra casa, virei vagabunda. Diziam que eu só queria ser o que não presta. Que eu não queria estudar. Você começa a não ir pra casa e eles vão te abortando. Decidi levar o punk como estilo de vida quando eles começaram a me proibir, quando começaram a colocar a polícia pra me prender à força na Praça do Ferreira”.


As gangues tinham em comum a pouca idade dos seus membros - a maioria tinha entre 14 e 19 anos. O grupo de Flor e Dedé costumava dormir em uma oficina mecânica no Monte Castelo, nos carros abandonados, onde também tomavam banho, de madrugada, em uma bomba d’água. “No meio da noite, quando chegava o frio, a fome, a gente se perguntava o que é que estávamos fazendo. Mas era uma dúvida que só vinha pela situação, não tinha relação com a causa que o punk defendia”, explica Flor.


E eles andavam por aí, organizando festivais em escolas e galpões, tentando fugir da velha lógica dos clubes com um estilo mais autoral de tocar e viver, a força do “faça você mesmo”. “Conjunto Ceará, Jurema, Conjunto Industrial, Conjunto Esperança, Antônio Bezerra, Monte Castelo… A gente só ia pouco pra Beira Mar, porque as coisas eram muito caras e não tinha cachaça. Como a gente ia viver ali?”, conta Flor. A força para as caminhadas vinha dos químicos: fiorinal, rohypnol e injetáveis criados a partir da asmosterona.


“Usávamos todos a mesma seringa, e acho que só não pegamos HIV porque os punks tinham uma sexualidade muito tranquila, careta até”, explica Flor. Em contraponto aos gritos de amor livre da geração hippie, os punks urbanos não encontravam no amor uma tábua de salvamento para os males da sociedade. “O que valia pra gente era a coisa do no future. Amor era esperança, e a gente não lidava com isso. Nosso discurso era do ódio, era pessimista. Eu namorei o Dedé por sete anos, mas era uma relação muito mais de companheirismo. Sexo existia, mas não era isso que unia o grupo. Era outra vibe, de destruir o sistema”. 

 

Muito menos ancorado na teoria e muito mais orgânico que outros movimentos que surgiram na época, o punk fortalezense gritava sua raiva sem se preocupar com o embasamento de suas queixas. “A gente tinha um discurso contra o sistema, e eu não sabia muito bem o que era, mas eu sabia que eram coisas que me oprimiam. Não conhecia o marxismo e o anarquismo eu até conhecia, mas não sabia falar sobre ele. Sabíamos que existia uma elite, e que éramos fruto de uma sociedade injusta e danosa” resume Flor.


Para Grilo, que compartilhou caminhadas e lombras com Dedé e Flor nos anos 1980, o que havia era uma ira generalizada. “Nossa raiva era contra toda forma de poder, desde a educação que recebíamos em casa. A gente só queria jogar isso pra fora, demonstrar a rebeldia. Os pais queriam nosso bem estar, que a gente andasse bem apresentado, mas começamos a sair com calças rasgadas, viramos a vergonha da família. E aí a gente mandou tudo se foder”, explica.


As rachaduras no movimento punk começaram a aparecer no final dos anos 1980, quando algumas das cabeças dessa geração passaram a se identificar com os Carecas do Brasil, uma espécie de disrupção nascida em São Paulo com regras inspiradas em parte pelos princípios neonazistas. Não usavam drogas, cultuavam os corpos perfeitos e direcionavam sua violência contra grupos específicos. Bandas se dissolveram, amigos se afastaram. A cisão foi inevitável.


A deterioração do movimento se acelerou após a morte de seu principal guia, Dedé Podre, em 1990. Em um domingo, depois de uma extensa caminhada do Icaraí até Fortaleza, regada à cachaça e drogas, o grupo dormia nos carros abandonados da oficina quando, na madrugada, Flor acordou sendo apalpada por um desconhecido.

Seu grito acordou Dedé, e assustou o agressor, que fugiu em direção ao Morro do Ouro. Os punks capturaram o fugitivo e o levaram de volta à oficina, para que Flor pudesse reconhecê-lo. “O Dedé queria matar ele com uma garrafa quebrada, mas eu não deixei. Na minha cabeça, tudo sobraria pra gente, porque o agressor era um cara com emprego, trabalhador. Insisti pro Dedé deixar o cara ir e no outro dia fomos à delegacia”.


O agressor de Flor passou três dias presos e foi liberado. “Nessa época, começou a ter briga de gangue, a aparecer arma de fogo, a coisa foi ficando perigosa. E a comunidade falou demais. Começou a dizer que o Dedé ia se vingar do cara. Ele ficou com medo e atacou o Dedé”. Dedé Podre foi atacado pelas costas em uma das ruas do entorno da oficina. Teve o baço perfurado com uma chave de fenda e não resistiu. Morreu no hospital, vítima de hemorragia interna, aos 19 anos. Sem seu líder, o movimento se esfacelou.


Pouco a pouco, encerraram-se as bandas, seus membros debandando-se para lados opostos. “Alguns deles me dizem que o punk morreu. Só se foi pra eles, que se afastaram, mas ele continua intenso. Talvez eles tenham saudade da repressão, achavam melhor a época da pêia, e isso não existe mais”, avalia Grilo, que mantém a Grillus Sub em atividade e é presença ativa na organização de feiras alternativas de música e arte.


Em diferentes graus, o punk continua marcando passado, presente e futuro dos personagens. Flor se afastou do movimento, mas dedicou sua vida ao atendimento de crianças em situação de rua e hoje tem atuação direta em diversos coletivos sociais. “O punk pra mim é a única solução, é a válvula de escape para fugir dessa lógica. Eu namorei, morei junto por três meses, tive um filho, mas não aguentei.

É repressão demais. Minha prioridade é minha liberdade”.

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Com a cabeça raspada e uma longa mecha rocha escorrendo pelo rosto, Flor diz não se arrepender do que fez. Faria tudo de novo? Não, isso não. “Era como se estivéssemos todos dentro de uma masmorra, prestes a ser mortos. Todo mundo trancado, como corredor da morte. Mas estávamos juntos, a gente se amparava. É isso o que eu sinto quando olho pra trás”.

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DEPOIMENTO


“Eu nunca me achei punk”


Jonnata Doll


Cantor e compositor


“Eu nasci em 1981, e na minha adolescência ouvi muito as histórias do Dedé Podre, da Flor, de toda a galera. O Dedé tinha virado uma entidade. Diziam que se você falasse o nome dele aconteciam umas coisas muito loucas nos shows. Eu era de família evangélica, fui criado muito preso. Via o punk através dos filmes, dos clipes. Uma vez, aí por 1997, eu tava na rua e vi um monte de punks passando.

Foi a primeira vez que vi essa galera. Fui correndo atrás deles e perguntei ‘ei, vocês vão tocar?’. Um deles olhou pra mim, cuspiu no chão e saiu andando.

 

Eu nunca me achei punk. Sabia que ser punk era muito mais que tocar música e botar um visual. Era aquela coisa de estar na rua, dormir numa oficina. Eu não queria ser punk morando com pai e mãe.

Era uma ruptura com a sociedade e eu não tinha como bancar. O punk me ajudou a perceber que eu podia fazer música sem a pretensão de fazer uma obra barroca.” 

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