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"Blade Runner 2049": sonhos com ovelhas elétricas
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"Blade Runner 2049": sonhos com ovelhas elétricas

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Quanto mais se assiste Blade Runner (1982), de Ridley Scott, mais camadas a gente descobre. Ali, há um dilema primordial sobre a finitude, tanto a de homens quanto a de androides. Há um futuro meio cyberpunk de visual espetacular e, ao mesmo tempo, caótico. Há uma jornada de um herói relutante que se mistura com um vilão visionário. E, revendo o filme recentemente e lendo um ótimo texto de um colega (Blade Runner e a melancolia, de Henrique Araújo, publicado no O POVO em 4 de outubro), descobri que há, acima de tudo, uma história de amor. Desse fio proposto por Scott em 1982, desalinha-se Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve, uma sequência respeitosa e que consegue ampliar o rico universo do clássico cult.

 

Em tempos de discussão sobre as alegorias bíblicas de Mãe!, controverso novo filme de Darren Aronofsky, Villeneuve revisita o mito da criação de forma bem mais pacífica. No centro da trama, o “androide-caçador-de-androides” K (Ryan Gosling). Na busca por um replicante fugitivo (Dave Bautista), o detetive descobre que seu adversário resolveu fugir após presenciar um suposto milagre. Paralelamente, conhecemos a androide femme-fatale Luv (Sylvia Hoeks) e o novo fabricante de replicantes, o maquiavélico sr. Wallace (Jared Leto), que sonha em uma sociedade com milhões de androides escravizados pela humanidade. O segredo para isso? O milagre que K tenta desvendar.


O principal mérito deste novo “Blade Runner” é o respeito com as obras originais, tanto o filme de Ridley Scott, quanto o livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas, de Philip K. Dick. Trazendo uma protagonista mais sintética, referências constantes aos implantes de memória e uma série de detalhes sobre animais reais e eletrônicos, Villeneuve faz jus ao romance. Ao estreitar ainda mais o limite entre o que é humano e o que é máquina, o realizador estende o escopo das obras. Soma-se a isso uma atmosfera neo-noir, com toques de referências japonesas e temos um equilíbrio entre o lido e o visto. E, além de tudo, Blade Runner 2049 é novo.


Do elenco original, só temos Rick Deckard (Harrison Ford) e Gaff (Edward James Olmos), em um papel minúsculo. Por mais que o tempo de tela seja limitado, o protagonista do filme original é, em vários sentidos, o dono do filme. Existe ali uma curva dramática bem mais acentuada do que sua história de amor com Rachael (Sean Young) e a dinâmica com o robótico K só amplia os dilemas sobre se Deckard é humano ou replicante. Em um pequeno pacote, o veterano ator consegue concentrar um drama de quase 30 anos do solitário personagem, que vive sozinho desde o fim do “prazo de validade” de sua amante fembot. Ford encabeça uma lista de atuações carregadas de nuances, junto aos coadjuvantes Dave Bautista, Sylvia Hoeks e Carla Juri.


Para além do visual fantástico recriado pelo design de produção de Dennis Gassner, Blade Runner 2049 é bonito por tratar o amor como semente da humanidade. Villeneuve contrapõe a frieza do sr. Wallace, um humano com modificações eletrônicas, com a obstinação de K. Enquanto o antagonista cria e descarta, o androide oferece liberdade à sua esposa-holograma, Joi (Ana de Armas). Assim como em 1982, este não é um filme de virtuosismo na ação, por mais que a robustez dos efeitos visuais de hoje permitam ir muito mais. O foco é filosófico, naquele dilema primordial sobre o que nos faz humanos.


E, de forma gradual e lenta (são 163 minutos de filme!), K vai preenchendo todas as caixas de resposta sobre o que é ser humano. Ele ama? Ama. Ele lembra? Lembra. Ele sofre? Sofre. Ele sonha, deseja? Sim, tanto com ovelhas reais quanto com ovelhas elétricas. Ele é capaz de se sacrificar por um bem maior? Bom, essa resposta não vou ser eu a dar. Tal qual Ridley Scott, Denis Villeneuve aposta em replicantes demasiado humanos e em homens de-humanizados. E para isso, aposta em alegorias bíblicas, em diálogos clichê e em mecanismos que tornam Blade Runner 2049 mais acessível que Blade Runner. A proposta se estende, mas um pouco da força da mensagem se dilui. Há, no entanto, um universo muito mais expandido e um roteiro que consegue reservar surpresas, ainda que pautado na repetição.


É difícil impor uma perspectiva histórica para a sequência de um fracasso-transformado-em-clássico. O que digo hoje é que Blade Runner 2049 é mais um desdobramento natural do que uma evolução ou um pastiche. É uma obra que se sustenta por si só, também oxigenando o antecessor, enquanto cresce ao se alimentar do longa de 1982.

 

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