Logo O POVO+
Cearenses descrevem como é o ofício da escrita
Vida & Arte

Cearenses descrevem como é o ofício da escrita

Na data em que se comemora o Dia do Escritor, o Vida & Arte convidou cinco cearenses para falar sobre a escrita, essa arte que move pessoas a utilizarem a palavra para transformar o próprio mundo e o dos outros
Edição Impressa
Tipo Notícia Por

SENTIDO.


Ofício do escritor: que dizer? Por primeiro, entendo que essa enunciação pode ser vista de, pelo menos, duas perspectivas.


Uma primeira, mais literal, entendendo-se ofício como aquilo que o dicionário diz que é: trabalho, atividade de sustento. Nesse sentido, nada posso dizer a respeito – e acredito que, nesse nosso lugar cearense, poucos o possam.


Uma segunda perspectiva (menos rente ao saber dicionarizado), permite compreender ofício num sentido cuja melhor expressão encontrei-a nas palavras duma poeta (Adrienne Rich), que se (e nos) perguntou: “Que espécie de animal transformaria a sua vida em palavras? A que propósito esta expiação?” Para mim, qualquer dizer sobre o ofício do escritor passa por essa interrogação; por essa sua reivindicação como um oficiar perverso. Ou seja: aquilo que se percorre pelo verso, pelo lado menos visível.


Como compreendo, o ofício da escrita (a literária, ao menos) tem sua responsabilidade no compromisso (palavras fora de moda, bem sei) de não esquecer a infelicidade que a faz existir; é esse o verso do visível que deve percorrer. Fazer ficção é mesmo (ou deveria ser) esse gesto de atirar pedras ao “real”, de agredi-lo, a fim de que, com esse gesto perverso, se possa, depois, tornar a esse “real” do mundo dando algum valor a mais ao que é humano. Em suma (como assentei num de meus livros): “Escrevo ‘para dar um certo valor ao que é mortal’. Que mais posso?” Do ofício do escritor, é quanto posso, e sei, dizer.


DÉRCIO BRAÚNA é poeta, cearense de Limoeiro do Norte e historiador. Já ganhou prêmios literários Brasil afora e publicou um punhado de livros


URGÊNCIA.


Em mim brotou na forma de curiosidade e, feito um aperreio, tornou-se um dos maiores imperativos da existência. Escrever, eu penso, é sempre uma urgência, dessas que te assaltam nos momentos (in)oportunos e te impelem (constrangem) a correr para o papel, o celular, o gravador, o que estiver ao alcance. As palavras, vejam só, têm vida própria e andam pelo mundo no meio das nossas aventuras, tristes e felizes, reais ou imaginárias, apropriando-se delas de tempos em tempos e criando mundos inteiros, verdadeiros refúgios.


Outro dia, eu andava com sorte na vida e vivia os dias com generosas porções de felicidade. Acostumada a escrever dores, não esperava que, em meio a uma situação impossível e feliz, fossem me assaltar as palavras, as palavras!, lamentavelmente despudoradas. Depois de um enorme sacrifício para memorizá-las diante da impossibilidade do registro, perdi-as. Para sempre. Senti genuíno aborrecimento e andei magoada por uns dias, pensando que nunca mais na vida seria presenteada com um arranjo semelhante delas.


Que graça! No fim das contas, escrever é justamente isso: dar à luz as palavras e andar de luto por elas continuamente.


KAH DANTAS é professora municipal, fã da Lana Del Rey, autora da não-ficção Boca de Cachorro Louco e administradora do canal Conta, Kah no YouTube.


CRIAÇÃO.


O que me move a escrever é o prazer da criar. Não me considero um escritor, mas um artista que gosta de escrever e usar a escrita como forma de manifestação – em algumas fases, meus trabalhos de artes visuais misturam desenhos, pinturas e palavras. Sempre gostei de escrever. Na infância, lembro que vibrava com as redações que escrevia na escola, principalmente as dos temas mais polêmicos. Depois, passei a fazer poemas de adolescente e provérbios que repartia com os amigos. Mais tarde, embalado pelo amor de pai, comecei a contar histórias para Letícia e, dez anos depois, para Luís Otávio, contos infantis que aos poucos foram virando livros – um deles, Janinho, o elefante amarelinho sonhador, recentemente publicado. Escrevo as histórias que invento e as vou inventando enquanto escrevo, complementando, ao fim, o texto com as ilustrações (este o momento mais instigante). Como acontece no meu trabalho de artes visuais, a realização dos textos e das ilustrações é algo que flui naturalmente, no seu tempo. Talvez por isso, a escrita seja mais um desafio de criação que um compromisso, um trabalho que tem que ser realizado. Não cansa. Não aflige. Deixa feliz. Quanto à literatura infantil, ela representa um reencontro com aquele garoto que gostava de escrever redações no colégio e, ao mesmo tempo, um grande encontro com o universo mais belo da existência, o dos pequeninos, com toda sua permissão de sonhar e de viajar até onde a imaginação conseguir ascender.


MARCOS ORIÁ é artista visual, pai da Letícia e do Luiz Otávio, inventor de histórias e publicou seu primeiro livro em 2016, após ser incentivado por amigos e família.


TRAVESSIA.


aqui pedra no meio do caminho pedra no caminho todo tão absurdo quanto esse mar verde dessa fortaleza que dá num lugar num sei onde talvez numa canção? pergunta irrespondível pra quê? a quê? veja bem é mais um eco mesmo só pra desalinhar o dia ficar pensando essa coisa opaca desestabilizadora da linguagem e já que não se reponde preferível ficar dançando com as palavras ou ficar mesmo só observando como elas fazem pra dançar sem a gente ficar dizendo dois pra lá dois pra cá deixa correr tudo solta assim pelo mundo a gente fica um olho mais encantado vendo assim mas às vezes elas vêm é pra arruinar pra socar e deixar tudo suspenso tão quieto que a gente se pergunta existe vida ainda? e questiona a vida a existência e de escrever a que será que se destina volta à questão de Caetano. Marguerite Duras disse, depois de dedicar-se tanto à literatura, em 1993, já perto de falecer, que podia dizer o que dissesse, não saberia nunca por que se escreve e por que não se escreve. Eu concordo com ela. O corpo que escreve lança-se a um mistério tão oculto. A escrita é tão mais próxima da noite infinda. E escrever é tão árduo e dói. Dói, como se rasgasse o corpo todo e atravessasse algo da alma. Pra quê, então? Mas chego ao papel, me rendo, escrevo. A escrita toma a gente com força, violência. Quão devastadora e maravilhosa é essa travessia… esse ofício balouçante: medo e coragem. Desnuda as carnes – desnuda – como nunca outra nudez.


SARA SÍNTIQUE é educadora, mediadora de leituras, artista e autora do livro Corpo Nulo, publicado em 2015. Sonha em ter uma barra de pole dance para treinar em casa


PROCESSO.


Dia 1. Agora vai! Aqui neste diário de escrita relatarei dia a dia do novo projeto pelo qual estou apaixonado. Está tudo programado, basta sentar e escrever.


Dia 2. Não escrevi. Não é bloqueio, não existe isso! Ocupei-me com outras coisas, mas amanhã vai dar certo.


Dia 3. Hoje o dia foi bom. Ainda não consegui escrever, mas tive boas ideias que foram adicionadas ao projeto inicial.


Dia 4. As novidades de ontem ficaram na minha cabeça. Passei o dia me planejando para tentar encaixá-las.


Dia 8. Fiz uma viagem. Nenhuma palavra, mas o livro não saiu da minha cabeça. Amanhã começo com todo gás.


Dia 15. A semana foi cruel no trabalho. Perdi o caminho. Olhei minhas anotações e não me vejo mais no projeto.


Dia 17. Escrevi hoje! Mais de mil palavras. Estou empolgadíssimo: demorei a engatar, mas agora vou com tudo.


Dia 18. Reli o que escrevi ontem. Estava um lixo, não se salva um paragrafo. Joguei fora. Não desanimei, às vezes precisamos dar um passo atrás para seguir em frente.


Dia 22. Tive uma nova ideia, melhor e mais interessante que a anterior. Minha meta agora é terminar a primeira para que eu possa trabalhar na segunda.


Dia 25. Estou com bloqueio. Não sei o que é, mas não consigo escrever.


Dia 28. Minha mente tem sido consumida pela nova ideia. O que devo fazer?


Dia 30. Abandonei o projeto original. Já esbocei a nova ideia, magnífica. Amanhã começo um novo diário.


Dia 1. Hoje escrevi um conto inteiramente novo de três mil palavras. Abandonei aquela ideia que me fez desistir da primeira, mas acho que já estou com outra na cabeça...


WILSON JÚNIOR é escritor, criador do coletivo literário Escambau e artista. Ministrou oficina de escrita criativa para alunos da Rede Cuca, que gerou o livro Vozes do Jangu

 

O que você achou desse conteúdo?