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Coletânea Pessoal de Belchior.Artigo da professoa Josely Teixeira
Vida & Arte

Coletânea Pessoal de Belchior.Artigo da professoa Josely Teixeira

Edição Impressa
Tipo Notícia Por

Josely Teixeira

ESPECIAL PARA O POVO

 

Nas muitas entrevistas que li e acompanhei de Belchior, especialmente a partir da década de 1990, aparecia sempre a mesma pergunta: “Por que você sempre grava as mesmas músicas?”, que vinha ora de forma velada, ora entremeada à questão de “Quando você vai lançar um disco com músicas novas?”.


De fato, o último disco autoral do compositor cearense tinha sido em 1993, Baihuno. E a partir daí, com algumas exceções e trabalhos especiais, como os álbuns Vício elegante (1996, no qual Belchior interpreta importantes compositores da música brasileira) e As várias caras de Drummond (2003, onde Belchior musicou 31 poemas do poeta de Itabira), somando-se a discos coletivos (como aconteceu no CD Ednardo, Amelinha e Belchior - Pessoal do Ceará, de 2002) e a participações em álbuns de outros compositores (a exemplo de O grande encontro III, de 2000, quando cantou com Zé Ramalho Garoto de aluguel). Depois de 10 discos de carreira com centenas de músicas inéditas, parecia aos olhos ávidos da imprensa que a fonte autoral do compositor de Como nossos pais tinha secado.


Sim, já a partir de 1979 começaram a ser lançadas dezenas de coletâneas que prometiam reunir na lista limitada comum aos suportes LP/CD o melhor do cancioneiro do letrista. E é mais do que compreensível a presença nas coletâneas de clássicos como Apenas um rapaz latino-americano, Como nossos pais, Medo de avião, Mucuripe, entre tantos outros, consagrados na difusão em rádio e TV e nas apresentações públicas de Belchior.


Apesar da cobrança constante da mídia, com a gentileza que lhe era característica, Belchior sempre respondia aos jornalistas, explicando que ele não controlava as coletâneas de sua obra. E muitas vezes cheguei a comentar o tema com ele nos bastidores, com um Belchior sempre rindo: “Eu não tenho culpa! São as gravadoras que escolhem as músicas”.


Para o grande público, essas coletâneas tanto indicam a importância de seu trabalho para a história da música brasileira quanto possibilitam aos ouvintes escutar uma lista de músicas fundamentais da carreira do artista. Certamente muitas dessas composições coincidem com a lista de canções pessoais da vida de muitos de nós.


Mas com a partida de Belchior, penso especialmente na minha coletânea pessoal de canções do sobralense. Para fazer a minha lista, deparei com a dificuldade dos produtores de discos para escolher somente algumas canções. Dentre as mais de 300 composições dele, aqui estão apenas 11 músicas, que foram gravadas em cada um dos álbuns autorais de Belchior: de A palo seco, de 1974, a Baihuno, de 1993. Eis:


1. Passeio (lírica homenagem à cidade de São Paulo) - A palo seco, 1974


2. Sujeito de sorte (traz um dos versos mais contundentes de Belchior: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”) - Alucinação, 1976


3. Pequeno mapa do tempo (crítica à ditadura militar brasileira) - Coração selvagem, 1977


4. Bel-prazer (uma espécie de auto-manifesto identitário de Belchior) - Todos os sentidos, 1978


5. Pequeno perfil de um cidadão comum (triste relato da vida de milhões de brasileiros nas metrópoles) - Era uma vez um homem e o seu tempo, 1979


6. Aguapé (canção cinematográfica, uma das mais comoventes de Belchior) – Objeto direto, 1980


7. Monólogo das grandezas do Brasil (retrato do migrante que sangra na cidade grande e sonha em voltar para o sertão) - Paraíso, 1982


8. Rock-romance de um robô goliardo (canção que expõe ao máximo a rebeldia e o sarcasmo de Belchior) - Cenas do próximo capítulo, 1984


9. Jornal-blues - canção leve de escárnio e maldizer (canção irônica, em que Belchior critica “os cidadãos respeitáveis, pais e patrões do País”) - Melodrama, 1987


10. Balada de madame frigidaire (aborda o consumismo de forma singular como se lê no verso “Pra que Deus, Dinheiro e Sexo, / Ideal, Pátria e Família, / Se alguém já tem frigidaire?”) - Elogio da loucura, 1988


11. Baihuno” (canção com tom autobiográfico, em que Belchior rememora o próprio passado de rapaz latino-americano vindo do interior) - Baihuno, 1993


No denso cancioneiro de Belchior, esta é apenas uma das tantas listas que pode ser formada e vai variar a depender da fase e do contexto de cada um. Esta é a minha coletânea de hoje. Da Josely de hoje. Do Brasil de hoje.


O que realmente importaria para o autor dos versos “Na fúria das cidades grandes eu quero abrir a minha voz./ Cantar como quem usa a mão para fazer um pão, colher alguma espiga./ Tentar o canto exato e novo pra ser cantado pelo povo na América Latina./ Eu quero que a minha voz saia no rádio e no alto-falante! (Voz da América) é que escutemos a coletânea de canções de Belchior que compõem a vida e a história de cada um dos seus admiradores.


Josely Teixeira Carlos é professora de linguística e pesquisadora da USP, com teses de mestrado e doutorado sobre a obra de Belchior

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