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O Grande Irmão está observando o Brasil
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O Grande Irmão está observando o Brasil

Encerrada na última sexta-feira, 12, a 19ª edição do Big Brother Brasil suscitou um importante questionamento: o que o programa reflete sobre a nossa sociedade?
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Big Brother Brasil 2019 (Foto:  Divulgação)
Foto: Divulgação Big Brother Brasil 2019

Paula von Sperling Viana venceu o Big Brother Brasil 2019 com 61,9% dos votos do público na última sexta-feira, 12. A bacharel em Direito de 28 anos encerrou sua participação no reality show com o farto prêmio de R$ 1,5 milhão, mas já saiu da casa como alvo de um inquérito aberto pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para investigar comentários racistas e intolerantes que proferiu ao longo da edição. "Errando, falando demais e sendo até processada eu ganhei", afirmou a vencedora em entrevista coletiva após o resultado. Muito além de uma vitória pessoal, entretanto, o triunfo da mineira nos aponta um pertinente questionamento: o que o BBB reflete sobre a sociedade brasileira?

Produzido e exibido pela Rede Globo desde 2002, o programa encerrou sua 19ª edição com a pior audiência desde seu lançamento - em geral, carro-chefe da emissora. Apesar dos baixos números, retrato também de uma rejeição do público aos temas debatidos na "casa mais vigiada do Brasil", o reality movimentou amplamente as redes sociais durante seus três meses de duração. "Vivemos na sociedade da informação, do instantâneo e do espetáculo. Essas três noções juntas nos ajudam a entender em boa parte o sucesso que esses programas alcançam: a partir da espetacularização do que normalmente fica mais restrito ao âmbito privado há uma criação de identificação pelas informações ali partilhadas. Mesmo que haja encenação das situações", explica Georgia Cruz, professora do curso Sistemas e Mídias Digitais da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Essa espetacularização do cotidiano, observado com uma lupa pelo País inteiro durante 24 horas, expõe com igual acuidade problemáticas componentes da vida social - como violência, educação, saúde, desigualdades sociais e discriminação. Ainda no mês de janeiro, o biólogo acreano e coordenador educacional indígena Vanderson Brito foi desclassificado do reality por causa de acusações de assédio e estupro. Já em fevereiro, o vendedor de queijos e barman mineiro Maycon Santos afirmou ter praticado atos classificados pelos confinados como zoofilia.

As acusações de racismo e intolerância religiosa, entretanto, caracterizam o BBB 19 como problematizável em diversos aspectos. Paula, ex-miss Agropecuária de Lagoa Santa, emitiu uma série de comentários preconceituosos - chamou o cabelo cacheado de "ruim"; recordou o esfaqueamento de uma amiga e disse se surpreender ao ver que "o cara era branquinho" e não "um faveladão", como imaginou ser o criminoso; destilou contra religiões de matriz afro-brasileiras ao lado do brother Diego Wantowshy ao afirmar ter medo do cientista social carioca Rodrigo França por o participante ter contato com "esse negócio de Oxum".

As atitudes de Paula, embora condenáveis e passíveis de criminalização, despertam um debate fundamental - como o Brasil ainda é estruturado pelo racismo? Muito além de condenar Paula, é preciso compreender quais as consequências geradas por uma sociedade que evita debater as marcas de um passado escravocrata. "O olho que tudo vê, analogia à identidade visual do BBB, só coloca dentro das casas, nas redes sociais e nas rodas de conversa o que há de real e isso causa estranhamento e indignação quando passamos a perceber como falas preconceituosas, racistas, homofóbicas, misóginas e classistas são naturalizadas. A ganhadora do Big Brother traz em si o registro indelével do que há estruturalmente na sociedade", argumenta a professora do IFCE e coordenadora Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, Anna Érika Ferreira.

"A maioria dos brancos de classe média do Brasil vive em uma espécie de bolha, como se o racismo não existisse", defende Geísa Mattos, professora de Sociologia da UFC. "Em vez de reconhecerem as desigualdades recorrentes do processo de escravidão no Brasil, diversas pessoas se colocam como se fossem vítimas. Há uma construção, por exemplo, do racismo reverso como se coloca no BBB. 'Ah, eu já fui chamada de branca fantasma...'. Acontece que falar ou criticar uma estética por ser branca não afeta as oportunidades que essa pessoa tem no mundo social. Quando a gente fala de racismo estrutural, a gente está falando de oportunidades que os brancos têm e os negros não têm. O racismo estrutural nega oportunidade a negros sistematicamente e, ao mesmo tempo, coloca essas pessoas negras em situação de vulnerabilidade ampla", complementa.

Nas redes sociais, os apoiadores da Paula rebateram as críticas sobre a atitude da participante alegando uma suposta edição tendenciosa da Rede Globo. Por outro lado, apoiadores de participantes negros como Gabriela Hebling e Rodrigo, que constantemente travavam diálogos sobre racismo com os demais brothers, também falam do papel da edição em uma suposta camuflagem do preconceito. Comenta Geórgia: "A edição de um programa pode afetar gravemente a opinião que o público constrói sobre um assunto. Ao editar um participante de um programa, posso priorizar somente os seus atos mais interessantes para cativar a audiência, humanizá-lo, mesmo que haja declarações de cunho discriminatório em seu discurso. Isso porque, ao suprimir partes que seriam desagradáveis para a mensagem que eu quero criar, gero uma personagem idealizada. No caso específico de alguém que tem declarações racistas e classistas, mas ainda assim aparece na preferência do público, temos ainda o fator de identificação que essa edição provoca na percepção: afinal, o espectador pode pensar 'quem não é racista de vez em quando?'".

O psicanalista Henrique Asfor retoma escritos de Sigmund Freud, de 1919, sobre o inquietante ou o estranho-familiar para analisar o BBB e os casos de discriminação. "O texto apresenta justamente o que você enxerga no outro que é seu, mas que você não percebe em si e, por isso, rejeita. Acredito que essa edição do Big Brother foi fundamental para percebermos como o Brasil se identifica com essas pessoas. Por outro lado, foi muito significante também observar o diálogo proposto pela Gabi e pelo Rodrigo, sempre explicando o contexto histórico de cada colocação. Por mais que certas punições sejam importantes, a conversa é sempre o melhor remédio. A saída é através da educação, e essa educação não é só de escola".

Outros participantes icônicos do Big Brother

Gleici Damasceno

Vencedora do BBB 18, a estudante de Psicologia acreana é militante de movimentos sociais

Ana Paula Renault

Ex-BBB 16, a jornalista mineira foi expulsa do programa após um tapa em um desafeto. Participou do reality show A Fazenda 10

Marcos Harter

No BBB 17, o participante do reality foi expulso por indícios de agressão a Emilly, vencedora da edição

Jean Wyllys

Participante do BBB em 2005, o ex-deputado federal movimentou o programa ao defender a pauta LGBT

Bate-papo com a professora Anna Érika Ferreira

O POVO: Nesse cenário de racismo estrutural, muitas vezes denúncias do ato são encaradas como "vitimismo" ou diminuídas em sua gravidade. Ainda assim, tais discussões no BBB 19 foram muito acentuadas. Estamos avançando nessa questão ou ainda é muito incipiente? O que ainda precisamos fazer no combate à discriminação?

Anna Érika: É bem verdade que se compararmos a atual realidade com os nossos antepassados que enfrentaram o escravismo, estamos um pouco melhor. Mas hoje enfrentamos chacinas, feminicídios, entre outras mortes evitáveis e que têm atingido as nossas representações em espaços de poder como foi o assassinato de Marielle Franco. Quando decidimos sermos vozes contra todos esses crimes vemos a impossibilidade de se lutar contra o racismo sem desagradar os racistas, invariavelmente! É um lugar de conforto para os racistas se manterem respaldados no mito da "democracia racial" que só impossibilita a democracia racial

O POVO: Qual é a responsabilidade midiática na construção desse debate?

Anna Érika: Primeiro de tudo, pautar a questão racial. Promover visibilidade ao povo negro e desnaturalizar o racismo, a intolerância racial e o ódio fazendo com quem acha que está tudo democraticamente colocado em seus devidos lugares, entenda que quando se é negro a história é bem diferente. Até que ponto existe permitir um tema ser discutido e deixar transcorrer uma avalanche de falas racistas, agressivas e de máximas defendidas com tanta força por uma imagem que fica vitoriosa, quando na verdade o que venceu foi o fosso que a nossa sociedade apresenta.

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