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Uma vida pela dança
Vida & Arte

Uma vida pela dança

Às vésperas de completar 82 anos e da estreia do documentário sobre sua vida, a bailarina brasileira Márcia Haydée fala sobre o passar do tempo e da dedicação à dança, à fé e ao crescimento espiritual
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A bailarina Márcia Haydée (Foto: Robert Schwenck/ Divulgação)
Foto: Robert Schwenck/ Divulgação A bailarina Márcia Haydée

Márcia Haydée não está em movimento - ela é o movimento. Nascida em 1937 no município de Niterói (RJ), afeiçoou o corpo à dança com tão somente três anos de idade: foi ainda na infância que trajou pela primeira vez as delicadas vestes de ballet. O destino, naquele momento, costurou sua coreografia pela vida sobre sapatilhas de ponta. Bailarina internacionalmente renomada, Márcia segue agora com a missão de divulgar o documentário Uma vida pela dança (2018), produção que aborda sua trajetória na arte. A obra estreia no próximo dia 18, quando a artista completa 82 anos.

A bailarina Márcia Haydée
A bailarina Márcia Haydée (Foto: Robert Schwenck/ Divulgação)

Formada por Yuco Lindberg e Vaslav Vetchek ainda no Brasil, Márcia atravessou o Atlântico aos 16 anos e ingressou na Royal School de Londres. Pouco depois, a bailarina descobriu Paris em companhia do reconhecido Marquês de Cuevas - nas terras francesas, tornou-se primeira bailarina. Em 1961, o diretor John Cranko contratou Márcia como primeira solista do Ballet de Stuttgart na Alemanha. Cranko inspirou-se nela para coreografar obras como Romeu e Julieta, Eugène Oneguin e A Megera Domada. A brasileira tornou diretora do ballet alemão e, depois, também do Ballet de Santiago, Chile.

Trabalhando entre Brasil, Chile, Colômbia e Alemanha, Márcia partilha sua rotina de dançarina com a de viajante - nos mapas geográficos e nas experiências estéticas. Na véspera do aniversário, a bailarina diz não estar interessada em fazer o que fazia, mas em descobrir o que pode o corpo que carrega sua alma.

O POVO - Uma das frases que você diz logo na abertura do documentário é que você não gosta de olhar para trás, que está sempre olhando para a frente, e que está preocupada com o que tem que fazer até Deus te levar para outro lugar. Como é estar na plateia e assistir à sua própria vida, quando você sempre esteve no palco?

Márcia Haydée - Foi um momento muito especial para mim. Eu tive um passado muito feliz, muito movimentado, com meus altos e baixos, e foi uma vida até agora incrível. Então eu não gosto de olhar para trás porque você não pode ficar agarrado ao passado. A vida é observar o hoje, pois amanhã você não sabe se estará por aqui. Então você tem que viver seu dia a dia completo, quase como se fosse o último dia de sua vida. Ou então olhar para o futuro. Mas depois, quando eu estiver do "outro lado", aí então vai passar como se fosse um filme, com cada momento da vida que eu tive e aí eu vou poder ver os erros que cometi e o bem que eu fiz. Para mim a vida é como uma escola. Você tem que aprender e até o dia que você falecer você estará aprendendo o que é a vida, como viver, como receber as coisas que vêm até você. Isso é algo que eu tinha desde pequena. Ainda criança eu tinha uma certa sensibilidade e vivia em "dois mundos" sem saber como. Eu sentia o mundo que chamamos de real e a outra energia, outra dimensão. Isso talvez porque meu avô me falava muito disso, meu avô era uma pessoa muito espiritualizada e ele não conversava comigo como uma criança.

O POVO - Qual a sua impressão ao ter que visitar sua própria história?

Márcia - Como artista, eu me lembro que enquanto eu estava ainda ativa, dançando, eu não podia olhar meus vídeos porque sempre achava um erro em mim. Era muito perfeccionista. Eu não via o que o público via, que era tão especial. Eu olhava para as coisas que eu sabia que eu ainda poderia melhorar. Somente agora, depois que eu cheguei aos 80 anos, é que eu vejo vídeos de quando eu dançava, e começo a entender o que é que o público via em mim. Eu tinha um mote em minha vida que era "sempre fazer o impossível". Até o dia de hoje e, por isso, eu estou com 81 anos e nem penso na idade. Agora, por exemplo, eu vou pra São Paulo, de lá vou pro Chile, do Chile eu vou pra Bogotá, de lá vou para Stuttgart e volto pra Bogotá, vou pra Santiago, volto para a Alemanha. Eu fico viajando como se fosse uma pessoa de 20 anos. Para mim não tem barreira.

O POVO - Ao final do documentário você diz que sente que a vida está começando aos 80 e todos os dias, quando você acorda, diz: "o melhor está por vir". O futuro é uma mola que lhe impulsiona?

Márcia - É porque eu vejo o problema do ser humano, que quando ele chega a uma certa idade impõe a ele mesmo limites. "Quando eu tiver 60 anos eu já não posso fazer mais isso que fazia". Eu não estou interessada em fazer o que eu fazia, eu estou interessada em ver o que com 80 eu posso tentar fazer de novo, uma coisa nova. Descobertas, essa é a palavra. Isso é muito raro porque o cidadão quando chega aos 60 já começa a pensar que terminou a vida e isso tem muito a ver com a nossa sociedade que é toda para os jovens.

O POVO - Ao se permitir olhar para o futuro, há também expectativas. Como essas expectativas estão presentes na sua vida?

Márcia - Uma coisa sempre foi certa na minha vida: eu queria ser uma das grandes bailarinas do mundo. Agora, como chegar a isso, não fui eu que fiz o meu caminho, foi o universo, ou Deus, ou o que você quiser acreditar, que desenhou meu caminho e eu tive a inteligência de seguir o que vinha a minha frente. Até hoje é a mesma coisa. Você tem que esperar que a vida te ponha na frente.

O POVO - Imagino que, para uma bailarina, o tempo é muito presente. Você precisa conviver com a contagem do tempo, do ritmo. Qual a sua percepção do tempo?

Márcia - Eu tenho a relação com o tempo diferente. Eu não vejo o tempo passar, eu não me olho agora no espelho e digo "ih, meu Deus, já passaram tantos anos". Eu vivo o presente e vejo o que é que eu tenho que fazer amanhã, ou depois ou hoje, mas não o passado.

O POVO - No seu documentário, você faz reverência a uma imagem de um Exu, tem um Buda em seu jardim, você fala que sempre teve consigo a crença em fadas e gnomos. Você tem um elemento divino que anda com você?

Márcia - Se não fosse a relação que eu tenho com a espiritualidade, com o Divino, eu não poderia fazer tudo que eu faço e não seria a pessoa que eu sou. O Divino existe para mim e a parte mais importante da minha vida é essa. Esse é meu motor. Quando eu conheci o Ismael Ivo, foi ele quem me disse "Márcia, o Gira Mundo é o protetor, ele gira o mundo, ele protege as casas". Então eu pus a estátua do Gira Mundo no jardim da minha casa para protegê-la. E eu e meu marido ficamos fora muito tempo e nunca passou nada na nossa casa. Por que? Eu acredito que esse ser, essa entidade vai tomar conta da minha casa. Os meus gnomos, meus elfos, eu tenho todos eles e, sempre antes de ir embora, eu faço pipoca para eles e peço que tomem conta da minha casa. E eles tomam. São seres, são elementos que estão na vida para nós utilizarmos. Mas quem acredita nisso hoje em dia? Quase ninguém.

O POVO - E o que seria seu Deus?

Márcia - Deus para mim é a grande energia do universo. O problema é que as pessoas não pedem ajuda. Os elementos estão aí, os seres estão aí, Deus está aí, a energia do universo está aí.

O POVO - E você já pediu por algum milagre e ele aconteceu?

Márcia - Tudo que pedi eu sempre consegui até o dia de hoje. Se hoje eu peço alguma coisa, pode ter certeza que amanhã o que eu pedi está arrumado. E tenho uma conexão. Não é uma coisa que eu tenho que ir até a igreja para pedir. Eu tenho a minha própria igreja. Meu próprio santuário sou eu.

O POVO - Você disse em uma entrevista que você faz o que você ama e quer fazer até o fim. Queria entender dos amores que você vivenciou. O que você aprendeu com o amor?

Márcia - Você não pode viver sem amor. Mas não somente a uma pessoa, é amar a vida, uma cadeira ou um salão. Não é uma coisa que você vive em certos momentos e outros não. Você tem que estar constante. O amor é você. Não é uma coisa que você põe em você, ele está dentro de você. O amor é a força mais divina que existe.

O POVO - Ao longo da vida você esteve em toda parte, em todos os continentes. Diante disso, qual sua visão de um mundo ideal?

Márcia - Um de meus companheiros do Ballet de Stuttgart disse que naquele palco e ambiente onde tinha gente de todas as partes, religiões e culturas havia uma paz, um equilíbrio que deveria ocorrer do lado de fora. Ali naquela bolha não existia guerra e, para ele, o ideal de mundo seria aquele, de diferenças unidas.

O POVO - E você vê possível essa utopia de acreditar na paz e na união das diferenças?

Márcia - Somos todos seres humanos, tanto faz a cor, a nacionalidade, o que for, somos todos iguais seja negro, branco, amarelo, gay… Todos somos iguais por Deus!E por isso no meio do ballet eu me sinto bem. No ballet, nós vemos se a pessoa tem talento ou não tem talento, mas não nos importamos com a nacionalidade, não vemos a cor. Você vê a entidade, você vê o ser humano. Isso para mim seria o mundo perfeito, mas ainda estamos longe de conseguir. Talvez nunca consigamos porque isso daqui é uma universidade, uma escola e se estamos aqui para aprender, eu acho que não teremos nunca um mundo perfeito. Por isso, nascemos, morrermos, reencarnamos e vamos continuando até aprender e chegar a uma certa elevação.

O POVO - A arte traz consigo o pacote do ego, e você tem que aprender a lidar com a fama e com o sucesso. O que o sucesso lhe trouxe? O que lhe tirou?

Márcia - O que ele me trouxe foi que eu consegui fazer o que sempre quis, me tornei uma das grandes bailarinas do mundo. Me tornei mais ainda, diretora, coreógrafa. E tudo que eu não pensava que iria chegar eu acabei fazendo tudo isso. Mas o importante é que todos nós temos que ter um ego, porque o ego é como um motor que nos empurra. Mas é como você usa esse ego. Tem coisas na minha vida que eu nunca mudei. Não é que, de repente, eu disse "ah, agora eu sou uma diva e uma diva não pode fazer compras no mercado porque depois vai sair carregando bolsa plástica com comida". Eu nunca fui assim, eu continuei e eu disse: "esse preço eu não vou pagar. Eu vou ficar sempre sendo o que sou, viver como eu quero.

O POVO - Você fala no documentário e brinca até de que numa próxima encarnação você gostaria de ser a mãe que não foi possível ser e logo você emenda dizendo que acha mesmo que na próxima vida voltará a ser bailarina.

Márcia - Não é nem que eu queira ser bailarina de novo, mas é que dança já foi uma parte de outras encarnações minhas. A dança tem a ver com a minha alma. Então não sou eu que vou decidir que na outra vida eu terei filhos. Talvez eu tenha que voltar como bailarina ou uma cantora. O que seja, eu estou preparada para tudo.

O POVO - E o que se leva dessa vida?

Márcia - O que eu levo, é que vou receber um diploma da vida que eu passei. Então, quer dizer que já estarei em outro nível. Em outra vida que eu tiver, eu já vou começar em outro nível e não vou voltar ao jardim de infância.

O POVO - Se existe uma fórmula, qual a fórmula para uma vida ideal?

Márcia - É muito difícil dar conselhos às pessoas, porque você somente pode ser um exemplo de como você conseguiu viver. Cada ser humano é diferente e o que funcionou para mim não quer dizer que vai funcionar para outro. Para mim o ponto primordial é: confiança na vida, confiança no destino, e o que aparece na sua vida você toma. Se aparece isso e você quer aquilo, você tem que ser inteligente. Que caminho você vai seguir? Você tem que saber qual escolher. E eu tive a sorte de sempre seguir as coisas certas na minha vida. Eu agradeço a Deus, ao Universo, a meus mestres, aos anjos, a tudo, todos os dias. Todo dia eu agradeço pela vida que tenho e tudo o que vou ainda ter. Até o momento que for decidido de eu ir para o alto. E com a morte é uma coisa muito divertida, porque meu avô, outra vez, quando eu era pequeninha, me disse: "Márcia, tem uma coisa que você tem que ter na sua vida o tempo todo. Teu melhor amigo tem que ser a morte. Você tem que ter uma relação muito boa com a morte porque o dia que a ela chegar e dizer 'Temos que ir'. E se a sua relação é muito boa com ela, você poderá dizer 'por favor, podemos esperar uma semana mais, ou um mês mais?'. Então, ele me pôs essa relação com vida e morte de uma maneira tão divertida, e até hoje eu sinto que um amigo está aqui, um amigo que vai me levar para o outro lado e vai chegar o momento em que eu vou poder dizer "ai podemos esperar um pouquinho mais ou temos que ir agora. O que você acha melhor?".

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