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Sentir tudo de todas as maneiras
Vida & Arte

Sentir tudo de todas as maneiras

Edição Impressa
Tipo Notícia

Se não fossem os meus inúmeros amigos eu não conseguiria viver direito. Ando com vontade de comprar um caderno novo para anotar o nome de todos, por ordem de chegada na minha vida e ir costurando sua companhia pelos anos.

Cada um mereceria algumas páginas com suas biografias, talvez fotos e desenhos, momentos engraçados que vivemos juntos. Teríamos o roteiro de um seriado de comédia, certamente.

Em geral a ideia de escrever sobre a própria vida só aparece na terceira idade, quando já chega a hora de prestar contas com o destino e dizer para si mesmo que valeu a pena. Ou que não valeu, vai saber. Pois eu já penso muito no plano de escrever sobre as pessoas que cruzam o meu caminho. São todas tão interessantes que me fazem uma criatura de sorte.

Minha primeira amiga foi a Cristina. Nos conhecemos quando eu tinha dois anos e ela foi morar no meu prédio, na rua Tomás Acioli. Dizem que eu gostei dela de imediato e eu confirmo. Somos amigas até hoje, mais de quarenta anos depois e eu poderia escrever um livro de crônicas só sobre ela e o que já vivemos juntas.

Por exemplo, sobre quando íamos a uma cartomante lá no fim do mundo.

Até hoje eu imito exatamente as frases que a mulher dizia. Confiávamos cegamente. A ladainha era que chegariam umas surpresas, uma lembranças, uns dinheiros, umas alegrias. Era assim. Sempre uma mulher loira, um rapaz moreno, um outro rapaz loiro, uma confusão engraçada espalhada nas cartas de um baralho comum. Fomos ver orquestras, shows, filmes, ouvimos muitas músicas, brigamos um pouquinho, viajamos, conversamos e a vida foi boa conosco.

O tempo passou mas eu ainda adoro as cartomantes. Semana passada fui de novo com uma amiga nova, a Mônica - lá no fim do mundo, elas nunca moram por perto. Que profissão sensacional essa de ver a vida alheia em pedaços de cartolina com desenhos! É claro que eu acredito nelas. Quem sou eu para querer duvidar e explicar os mistérios do universo? Quem me deu o poder de definir o que existe e o que é mentira?

Tenho amigos só para falar de Literatura, outro mistério do mundo. Alguns só sobre assuntos espirituais. Certas amigas são ótimas para comprar roupas ou tratar de maquiagem e a vida feminina. Outras excelentes para chorar no ombro. E há aquelas amizades que fazem rir muito, gargalhar para a vida e achar graça dos absurdos que nos cercam. Uma disse que pode até matar por mim, mas acho que é exagero dela. Muitos amigos me pedem conselhos e os que me obedecem se dão bem. Será que eu mesma não deveria, no fim da vida, virar cartomante?

Gosto muito dos que tem a capacidade de entender que às vezes a vida afasta a gente e isso não é nada demais. São os percalços naturais de estarmos vivos, mudando o tempo todo, virando outras pessoas e conservando o amor e o carinho para quando o reencontro acontecer.

Se um dia eu fizer um livro com esse pessoal todo que passa por mim os leitores entenderão que eu tive uma sorte danada. É uma boa ideia para qualquer pessoa criar o Livro dos Amigos. No meu caso, são eles que me ensinam a sentir tudo de todas as maneiras, como disse Álvaro de Campos, amigo inventado por Fernando Pessoa. Sentir a vida na plenitude, cheia de gente ao redor, é escrever a própria felicidade.

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