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A literatura como esporte de combate
Vida & Arte

A literatura como esporte de combate

| São Paulo | Realizado entre os dias 19 e 21 de março, Seminário Leitura e Escrita: Lugares de Fala e Visibilidade abordou o papel da literatura no reconhecimento das diversidades
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Silvio Luiz de Almeida é jurista, consultor, advogado e palestrante. Atua à frente do Instituto Luiz Gama e é autor do livro O que é racismo estrutural? (2018). Foto: Fernando Cavalcanti/ Divulgação (Foto: Fernando Cavalcanti)
Foto: Fernando Cavalcanti Silvio Luiz de Almeida é jurista, consultor, advogado e palestrante. Atua à frente do Instituto Luiz Gama e é autor do livro O que é racismo estrutural? (2018). Foto: Fernando Cavalcanti/ Divulgação

A voz serena da escritora Conceição Evaristo parece mesmo conselho baixinho ao pé do ouvido, mas a força ancestral de suas palavras corre subterraneamente e se espalha audível pelo corpo todo - revira, desordena, provoca. "A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos", grafou certa feita a autora de Insubmissas lágrimas de mulheres (2011). Mulher negra nascida em uma comunidade da zona sul de Belo Horizonte, Evaristo narra vidas continuamente apagadas da historiografia oficial: vidas como a sua. São muitas Conceições, Carolinas, Jarids, Amairas; são incontáveis Abdias, Nerys, Machados, Délcios. Autores que escrevem suas trajetórias, mas ainda não são amplamente lidos como os best sellers publicados por grandes editoras. Qual é, nesse cenário tão desigual, o papel da literatura no reconhecimento das diversidades?

Entre os dias 19 e 21 de março, o Itaú Social realizou o II Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura com o tema Lugares de Fala e Visibilidade, em São Paulo. O evento - que contou com a participação de especialistas e performers do Brasil, da América Latina e da Europa - iluminou questões como racismo, machismo, violência epistêmica e construção de identidades a partir do campo literário. O debate dialogou com o rico pensamento do crítico e sociólogo Antonio Candido: para o pesquisador, é fundamental enxergar a literatura como um direito básico do ser humano. "A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas", defendia.

No entanto, da teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico aos tratados acerca dos métodos de Francis Bacon, uma consciência filosófica marcadamente europeia, antropocêntrica e colonialista estruturou como conhecimento práticas que atendiam aos seus interesses políticos e socioeconômicos. Hoje, trava-se uma intensa batalha para combater o efeito do legado hegemônico na construção do que é tido como saber e diversificar vozes - garantindo, assim, uma multiplicidade de histórias. "A literatura vem desse lugar que é fascinante e perigoso", pontua a escritora mineira Ana Maria Gonçalves. Ao lado da chilena Sara Bertrand e da paulista Bianca Santana, a autora do aclamado Um defeito de cor (2006) participou de uma mesa com o tema Direitos Humanos e literatura e abordou os desafios da produção artística às margens da sociedade.

"A literatura e a linguagem são fundamentais para a formação de novos mundos, principalmente nesse período que vivemos no Brasil onde a mediocridade, a falta de cultura e a grosseria são políticas de governo. Nós, como artistas na sociedade, temos esse papel. Esse direito humano à literatura é o direito ao sonho, à imaginação, aos outros mundos possíveis. Esse direito dribla qualquer tentativa de cerceamento da nossa liberdade", continua Ana Maria Gonçalves. O envolvimento da autora com a leitura começou ainda na infância, quando via sua mãe varrendo a casa com uma vassoura em uma mão e um livro na outra. Curiosa, começou a frequentar a pequena biblioteca de sua cidade com sete ou oito anos, mas logo terminou de ler os infantis e alcançou o Jorge Amado da estante de casa. Descobriu, entre as páginas de Capitães da Areia, que crianças como ela viviam nas ruas.

"Eu escrevi Um defeito de cor porque queria contar uma história que me foi negada. Romperam nossos laços, nos tiraram sobrenomes. Encaro a literatura como resgate e tenho cada vez mais orgulho da mulher negra que estou me tornando", complementa Ana Maria Gonçalves. A memória na literatura também move a jornalista e historiadora Sara Bertrand: "Que seres humanos queremos formar? Não me sento para escrever sem essa pergunta em mente. A literatura desenvolve em nós a humanidade", acredita. A escritora relaciona o poder insurgente da literatura contra os regimes totalitários, relembrando a ditadura do general Augusto Pinochet no Chile (1973-1990). "Um livro é muito perigoso. Se esquecermos nossa história, é muito provável que Bolsonaros e Trumps se sucedam cada vez mais", lamenta.

A humanização citada por Bertrand corre nas veias de Bianca Santana. A cientista social, jornalista e autora do livro Quando me descobri negra (2015) foi alfabetizada por quatro vizinhas mais velhas que ela enquanto brincavam de escolinha. "Para mim, ali no bairro ainda na infância, passei a compreender a literatura como um processo coletivo", defende.

Referência em educação social e na criação de bibliotecas comunitárias na periferia paulista, Bel Santos Mayer também fez coro à Bianca em outra mesa do seminário: "A gente precisa escrever até que a mãe da gente entenda. Costumo pensar na literatura a partir da pedagogia do cafuné: fazemos tudo o que podemos para acolher o outro. Se você ouviu ou leu e não entendeu, vamos ler juntos. A literatura é, sobretudo, um exercício da escuta", finaliza a educadora.

A jornalista viajou a convite do Itaú Social

Leituras e escrita: lugares de fala e visibilidade

O II Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura reuniu, ao longo de três dias de atividades, uma programação partilhada entre o Sesc Pinheiros e o Unibes Cultural - ambos na capital paulistana. Promovido pelas organizações Itaú Social, Comunidade Educativa Cedac e Instituto Emília, o evento contou com seis mesas de debate, três oficinas e intervenções poéticas, tudo aberto ao público mediante inscrição.

Além das já citadas autoras e educadoras Sara Bertrand, Bianca Santana, Ana Maria Gonçalves e Bel Santos Mayer, o seminário sobre lugares de fala e visibilidade reuniu também nomes como Margarita Valencia, Delcio Teobaldo, Silvia Castrillón, Felipe Munita, Adolfo Córdova, Freddy Gonçalves, Maria Osório, Bruninho Souza, Ketlin Santos e Jardson Remido. Os temas debatidos foram lugares de fala e visibilidade; escrita e leitura, portas para a construção de identidade; o lugar da comunidade nos espaços de mediação; juventudes em risco e literatura sem fronteiras.

Durante as manhãs, o evento ofertou três oficinas: a primeira, ministrada pelo professor chileno Felipe Munita, apresentou habilidades teórico-práticas para atuar na formação de mediadores com crianças e jovens e literatura. Já o roteirista de telenovelas e promotor de leitura Freddy Gonçalves apresentou aos participantes o Projeto Eva, uma atividade baseada em romances distópicos que propôs a construção de uma sociedade nova e ideal. O jornalista, por sua vez, Adolfo Córdova abordou a criação de personagens a partir da própria identidade de cada um, principalmente os coadjuvantes das histórias.

Dianne Melo, especialista em programas sociais do Itaú Social, comemorou a presença dos especialistas em atividades realizadas também nas regiões de Parelheiros e Jardim Pantanal. "Consideramos importante que essas atividades cheguem em comunidades que veem a leitura como instrumento potente. Essa juventude está produzindo muito fora do circuito, buscamos dar luz à isso", argumenta. O evento contabilizou um público de 1.500 pessoas por dia e contou com acessibilidade em Libras.

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