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"Sinfonia de mentiras"
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"Sinfonia de mentiras"

| análise | Para diretores e produtores, a escolha de Green Book como Melhor Filme pela Academia eclipsa um Oscar com maior diversidade
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Jim Burke, Charles B. Wessler, Nick Vallelonga, Peter Farrelly, e Brian Currie, de Green Book - O Guia. Equipe
Foto: Frazer Harrison/Getty Images/AFP Jim Burke, Charles B. Wessler, Nick Vallelonga, Peter Farrelly, e Brian Currie, de Green Book - O Guia. Equipe "branca demais" para dirigir um filme sobre racismo

Mais diversidade, de fato, mas nem por isso com menos polêmica: o Oscar de Melhor Filme para o muito criticado Green Book fez ranger os dentes de muitos fãs do cinema.

A vitória da obra dirigida por Peter Farrelly, uma história baseada em fatos reais sobre um pianista negro e homossexual que faz uma série de shows pelo sul dos Estados Unidos na década de 1960 em plena segregação racial com um motorista de origem italiana, ativou uma avalanche de críticas por ser uma "explicação branca" de temas raciais.

No teatro Dolby, onde foi realizada no domingo, 24, a cerimônia de entrega do prêmio, o diretor Spike Lee ficou revoltado quando foi anunciado o principal vencedor da noite. O veterano diretor de Infiltrado na Klan, que também concorria ao prêmio de Melhor Filme, deu as costas ao palco quando a equipe ganhadora foi receber a estatueta dourada, segundo vários jornalistas que estavam no local.

Ao ser perguntado sobre a vitória de Green Book, o cineasta bebeu um gole de champanhe e em seguida pediu "a próxima pergunta", antes de insinuar que foi uma péssima escolha dos cerca de 8 mil integrantes da Academia Cinematográfica dos Estados Unidos.

Pouco antes de Green Book aguar o champanhe de muitos amantes do cinema, a 91ª cerimônia desta premiação mostrou sinais de avanço em relação ao #OscarsSoWhite (Oscar Muito Branco).

Foi Oscar do mexicano Alfonso Cuarón, que conquistou três estatuetas (Melhor Direção, Fotografia e Melhor Filme Estrangeiro) com seu drama autobiográfico em preto e branco, que colocou entre as indicadas a melhor atriz Yalitza Aparicio, uma professora de origem indígena que nunca tinha atuado antes.

Os dois prêmios de coadjuvantes foram para os atores negros Regina King e Mahershala Ali, que também é muçulmano. Já Rami Malek, filho de imigrantes egípcios, foi considerado o Melhor Ator por interpretar o vocalista do grupo Queen, Freddy Mercury, em Bohemian Rhapsody. Além disso, duas mulheres negras, Hannah Beachler e Ruth E. Carter, ganharam pela primeira vez nas categorias desenho de produção e figurino.

"Temos falado muito sobre diversidade. Tivemos algum progresso, mas os latino-americanos nos Estados Unidos, os chicanos (americanos de origem mexicana), estão verdadeiramente mal representados", disse Cuarón à imprensa.

Darnell Hunt, professor encarregado do relatório sobre diversidade da universidade UCLA em Los Angeles, concorda com o diretor de Roma. "Se estende principalmente à comunidade afro-americana, não vemos o mesmo nível de inclusão e reconhecimento para outros grupos pouco representados como os latino-americanos", disse à AFP. "Foi um bom ano em várias frentes", acrescentou. "Comparado com o que aconteceu há quatro anos, vemos progresso".

Green Book narra a amizade real entre o célebre pianista Donald Shirley e seu motorista particular Tony "Lip" Vallelonga. Hunt disse que ficou "perplexo" pelo fato de "o protagonista ser o chofer branco". "É uma espécie de traição com a história e o legado e realmente perdem a oportunidade de explorar isso com o personagem de Ali". Foi a mesma crítica que fizeram com os membros da família Shirley, que classificaram o filme como uma "sinfonia de mentiras".

"Cerca de 85% dos membros da Academia são brancos, composta por 70% de homens com uma idade média em torno dos 55 anos. Isto explica sem dúvida a vitória de Green Book no Oscar", opinou no Twitter o comentarista de televisão Wajahat Ali.

Premiado no evento pela primeira vez na carreira, na categoria roteiro adaptado, Spike Lee reconheceu que graças ao movimento "#OscarsSoWhite", a cerimônia "ganhou em diversidade"

Não venceram apenas King, Ali, Malek ou Cuarón... Também foi a noite do primeiro Oscar para uma produção dos Estúdios Marvel, premiado com Pantera Negra, um filme sobre um super-herói negro.

"As novas regras de abertura e inclusão da academia abriram o prêmio a vocês que não se viam nas telas. Será sumamente interessante observar nos anos seguintes anos como 'o cinema de Hollywood' responde a esta tendência", disse à AFP a professora Annemarie Meier, uma crítica de cinema e professora universitária em Guadalajara (México).

A guerra entre Hollywood e o governo do presidente Donald Trump mais uma vez se fez presente no Oscar. "Não há fronteiras, não há muros que possam frear a genialidade e o talento", disse em espanhol Javier Bardem, em referência ao muro que o presidente republicano insiste em construir na fronteira com o México.

Em seu discurso de agradecimento, Spike Lee igualmente pediu aos presentes que se mobilizassem contra o atual governo na campanha para as eleições presidenciais de 2020. "Vamos nos mobilizar. Vamos nos posicionar do lado correto da história", clamou o diretor.

Através do Twitter, Trump respondeu: "Seria legal se Spike Lee pudesse ler suas anotações, ou melhor ainda, não ter que usá-las em absoluto, quando faz seu ataque racista contra o presidente que fez mais pelos afro-americanos (Reforma da Justiça Criminal, números de desemprego mais baixos da história, cortes fiscais etc) do que quase todos os presidentes". (Por Javier Tovar, da AFP)

 

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