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Até onde devem ir a ironia e a irreverência no Carnaval?
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Até onde devem ir a ironia e a irreverência no Carnaval?

Músicas, trajes e atitudes antes tidos como "típicos" e "naturais" do ciclo carnavalesco são colocados em xeque. Afinal, até onde devem ir a ironia e a irreverência?
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A criatividade bate à porta. Nas canções, nas roupas e nas atitudes, o ciclo carnavalesco é lugar onde os foliões encontram oportunidade e vontade de extravasar. As formas como esses processos - em geral ligados à luxuria e ao festim - acontecem, entretanto, começaram a enfrentar contestações. Músicas antes cantadas sem reflexão, passaram a ser proibidas em alguns circuitos por seus teores machistas, misóginos e racistas. Quem se veste com fantasias que fazem alusão a populações específicas - como indígenas e ciganos - sofre retaliações diretas no meio dos blocos. Atitudes antes consideradas típicas do Carnaval - como beijos roubados - são cobradas como casos dignos de punição. Diante desse cenário, o Vida&Arte conversou com brincantes, pesquisadores e carnavalescos para perguntar: é possível e adequado impor limites na irreverência e na espontaneidade do Carnaval?

O ciclo carnavalesco nunca foi apenas um conjunto de festas. Como um momento de ruptura do cotidiano, ele fala sobre a nossa formação enquanto sociedade. "O Carnaval tem um forte aspecto de catarse. Todas as festas, aliás, quebram o cotidiano e colocam as comunidades em suspensão", explica o jornalista Gilmar de Carvalho, lembrando que o Carnaval é também uma releitura da sociedade feita pelos próprios foliões. "É um momento de denúncia, de protesto, de reivindicação. Nossas mazelas são expostas, os paradoxos são trabalhados, a inventiva está à solta", diz. É nesse estado de suspensão que algumas pessoas encontram espaço para serem aquilo que não podem ser durante os outros meses do ano: chapeuzinho vermelho, unicórnio, ginasta.

Silvinho Gurgel - ator e brincante de maracatu - acredita que os festejos carnavalescos pedem o uso da fantasia. Por isso, em suas idas à Praia de Iracema, ele investe em figuras que considera como homenagens. Uma roupa de índio para homenagear as populações indígenas, uma roupa de Cleópatra para homenagear o Egito. "Vou puxando a criatividade. Nada de ofensa! Carnaval é para a gente extravasar e mostrar o que gosta", explica Silvinho. Ele acredita na permanência do Carnaval como festa brasileira mais forte acima de qualquer polêmica. "Pode acontecer qualquer coisa, mas acabar a festa, principalmente no Brasil, não vai. As pessoas são preconceituosas, mas, ao mesmo tempo, são muito criativas. Sempre vai acontecer de alguém mostrando algo novo", aponta.

As formas como as populações brincam e aproveitam o ciclo carnavalesco são uma crônica do tempo e do momento presente, acredita o animador cultural Dilson Pinheiro. Responsável pela criação de blocos famosos na Cidade - como o Quem é De Bem Fica e o Não Ispaia Sinão Ienche - ele vê com ressalvas o fato de algumas músicas tradicionais do Carnaval sofrerem sanções, mas algumas canções "apelativas" e com "apologia a bebida" dos tempos atuais continuarem sendo executadas livremente em espaços públicos. "Música de Carnaval é sátira, é crônica do tempo".

Para a cineasta e professora universitária Manuela Andrade, é necessário lembrar dos equívocos vindos a partir da falta de informação. "Qualquer pessoa que tenha tido contato ou ido em busca de informações sobre povos indígenas, sabe o quanto são nocivas certas reproduções figurativistas: de que o índio tem que usar cocar, andar de flecha, e certamente não escolheria esses 'adereços' para sair no Carnaval", pontua. Ela lembra que não apenas no ciclo carnavalesco - mas também durante datas com o Dia do Índio - crianças são caracterizadas como índias e pouco se fala sobre a história dos povos originários do Brasil. "E eu fui uma dessas crianças que cresceu não sabendo quase nada sobre os mais de duzentos povos indígenas do País e como eles ainda estão vivos e resistentes", elucida Manuela - que dirigiu o filme Fantasia de Índio, no qual busca sua ancestralidade Xukuru.

Irreverência e chacota - na opinião de Gilmar de Carvalho - precisam ser alegres e baseadas na ironia, e não na depreciação do outro. "O outro tem de ser respeitado. Muitas vezes erramos a mão. A ideia do Carnaval é que as pessoas se divirtam, brinquem, se soltem. O cotidiano é feroz. Vivemos em uma camisa de força de trabalho, limites, normas, controle social. Resta pouco espaço para a transgressão", explica o pesquisador. O carnaval, na opinião de Gilmar, pede tolerância, flexibilidade. "Não no que seja inegociável, mas na brincadeira que tira sarro do sério, do careta". "Deve existir uma linha clara entre o bom senso e a agressão, entre o respeito e a iconoclastia que não leva a nada. Podemos curtir e respeitar o outro. Por que não? Alegria não se confunde com vandalismo", finaliza Gilmar.

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