Logo O POVO+
Demasiadamente humano
Vida & Arte

Demasiadamente humano

| Eduardo Coutinho | No mês que marca cinco anos da morte do cineasta, convidamos realizadores cearenses para refletirem sobre a influência do documentarista em suas obras
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Eduardo Coutinho, cineasta. (Foto: Filipe Redondo/Folhapress) (Foto: Filipe Redondo/Folhapress / divulgação)
Foto: Filipe Redondo/Folhapress / divulgação Eduardo Coutinho, cineasta. (Foto: Filipe Redondo/Folhapress)

Na lista dos 100 melhores documentários da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), nove são realizações do documentarista paulistano Eduardo Coutinho - no top 10, filmes do diretor constam na primeira, segunda e quarta posições. Considerado mestre e referência para o gênero documental no Brasil, Coutinho morreu em 2 de fevereiro de 2014. Deixou como legado obras inventivas, políticas e humanas como Cabra Marcado Para Morrer (1984), Jogo de Cena (2007), Edifício Master (2002) - respectivamente, número 1, 2 e 4 da lista da Abraccine -, Moscou (2009), As Canções (2011) e Últimas Conversas (2015). Para lembrar a data e a obra de Coutinho, o V&A convidou quatro realizadores que produziram documentários no Ceará para dividirem depoimentos sobre a influência do diretor na construção de seus olhares documentais.

Oralidade do comum

Eduardo Coutinho foi muito importante na minha formação como documentarista por dois motivos: o primeiro foi porque ele foi o primeiro documentarista brasileiro que tive acesso pelo cinema. Ter contato com a forma como ele entendia a estética para o cinema foi motivador, principalmente por sua forma crua de tratar a imagem, por sua objetividade enquanto processo e clareza, e pela importância que ele dava para a oralidade do comum. A segunda razão foi como o que aprendi com seus filmes influenciou no meu trabalho com audiovisual. O que mais me adicionou foi a forma como ele interagia com as pessoas que ele entrevistava, tratava-os claramente como personagens, mas sem abrir mão do respeito e da humanidade, qualidades essenciais na abordagem de um documentarista. Isso me proporcionou uma base, tanto para entender como lidar com as pessoas, quanto para a forma como eu escolheria expor suas vidas para outras pessoas. É com grande pesar que hoje me lembro da sua morte e como ela ocorreu, mas é com igual estima que guardo o grande aprendizado e a enorme admiração que tenho por sua vida e obra.

Bruno Xavier, membro do coletivo Nigéria, que já realizou documentários como Com Vandalismo (2013), Defensorxs (2015) e o ainda inédito Swingueira

Acaso que vira destino

Eduardo Coutinho respeitava suas personagens, algo tão primordial que me tocou profundamente, a mim e ao Arthur Gadelha, amigo e parceiro de trabalho. Recebemos influência direta desse cinema e colocamos em prática no nosso segundo filme, o documentário A Jovem Democracia, sobre o primeiro voto de estudantes secundaristas da rede pública de Fortaleza. O filme surgiu de um contexto imediato e ficou muito claro que não sabíamos o que iríamos encontrar. Tivemos que lidar com diferentes realidades e entender uma juventude que já não era a nossa, uma história nova sobre como pensam politicamente. Não tínhamos qualquer direito de buscar algo que queríamos ver. Iria surgir. Então Coutinho está na gente e não seria coincidência que durante as gravações exibimos no nosso Cineclube Âncora o seu Cabra Marcado Para Morrer. Um senhor que criou muito, fazendo um trabalho que reinventou nosso cinema. Quem dera estivesse vivo hoje para ajudar a entender a loucura que vivemos. "Quando o acaso acontece no filme, vira destino". Ouvi isso de Beth Formaggini no começo do ano passado, ela que foi produtora de muitos documentários de Coutinho. Pude ouvir histórias sobre ele e, vindas de alguém tão próximo, foi como se eu o conhecesse um pouco também. O "acaso" no documentário é tão mais importante do que um roteiro prévio. Guardo isso com muito carinho e sigo buscando esses acasos que dão significados especiais ao cinema.

Kamilla Medeiros é diretora do curta de ficção Capitais (2018) e do ainda inédito documentário Primeiro Turno

Encontro com o outro

Assistir aos filmes de Coutinho e não se envolver completamente com os seus personagens é algo impossível. A forma com que ele conseguia conduzir uma entrevista como uma conversa nos fazendo ouvir durante horas (e com muito interesse) as histórias de vida de pessoas das quais nunca ouvimos falar, "pessoas anônimas", que contavam suas vidas e também se reinventavam para ele naquele momento, era fantástico! E é exatamente essa mágica do encontro com o outro (interlocutor) que sempre me inspirou nos filmes do Coutinho e que procurei de alguma maneira também levar para os meus filmes, buscando tirar a entrevista do modelo do inquérito para uma experiência de interlocução e troca com as pessoas.

Daniele Ellery é professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira e diretora do documentário Do Outro Lado do Atlântico (2016)

Poder da história

Conheci Eduardo Coutinho em 1986, ele estava exibindo Cabra Marcado Para Morrer no Festival Internacional em São Francisco. Foi um encontro breve em uma recepção do Consulado Brasileiro. Nessa época, nem tinha ideia da sua obra e da sua importância na consolidação do documentário no Brasil. Como estudante de cinema, fiquei impactado com o filme: estava impregnado de vida! Era uma experiência muito nova a possibilidade de fazer cinema sem grande aparato, mas com uma ótima história. Voltamos a nos encontrar em 2002 quando fui chamado para fazer a captação de som direto de um projeto conjunto que Coutinho e João Moreira Salles estavam realizando. Um era Entreatos, dirigido pelo João e o outro Peões, pelo Coutinho. O do João seguia a campanha do Lula por onde ele fosse, até o dia da eleição. O do Coutinho conta a história das pessoas contemporâneas de quando Lula era metalúrgico. Foram semanas intensas, de pequenas descobertas quando pude abraçar meu mito e aprender com ele a importância de escutar o outro, de prestar atenção no que o outro está falando.

Márcio Câmara, diretor do documentário Do Outro Lado do Atlântico

O que você achou desse conteúdo?