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A resiliência do sim
Reportagem

A resiliência do sim

| COMPORTAMENTO | Ao buscar as razões da juventude que se nega a estar no mercado de trabalho formal, a pesquisa sobre a Geração N revela o potencial inventivo dessa geração
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Tipo Notícia

M., 25 anos, que não concluiu o ensino fundamental e perdeu as contas de quantas vezes tentou voltar para a escola, entre quatro gravidezes, situações de abuso e mudança de favelas; M., que apanhou da madrasta e usou drogas, e fazia marmitas enquanto sentia dores por causa de miomas no útero; M., que "não tem sorte com os companheiros que arranja, todos eram preguiçosos para trabalhar", e reencontrou um amor da infância, e perdeu outro amor, o da vida, em um acidente de moto, e é "apaixonada pelo atual companheiro"; M., que recebe R$ 500 de pensão e negocia eletrodomésticos usados, e já conseguiu vaga na creche para três filhos, e diz que vai fazer "de tudo para que eles terminem os estudos"; M., que já morou em abrigos e de favor, sonha "em construir a própria casa".

A vida de M., moradora de um Grande Bom Jardim na fronteira com Caucaia (Região Metropolitana de Fortaleza), tecida entre negações, é um dos extremos da geração local de jovens que nem estudam, nem trabalham, nem procuram emprego (Geração N), revelada na pesquisa "Eles dizem não ao não". Vida que cruza com as faltas de direitos nas periferias das metrópoles e que segue, em sobrevivências, pelos "nãos" que também responde a políticas públicas distantes da realidade.

A pesquisa parte de juventudes (16 a 29 anos) que deixaram a escola e não se inseriram no mercado de trabalho formal. Questionários e conversas "colocaram abaixo o conceito de nem, nem, nem porque esse público não está interessado nas carreiras lineares", sublinha a socióloga Glória Diógenes, coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes da Universidade Federal do Ceará (Lajus/UFC) - realizador da pesquisa com o apoio do Instituto Oca. "Eles dizem não ao não dado a eles", ela completa, referindo-se a escolas e políticas públicas "que não atraem" porque não dialogam com a vida que eles são capazes de recriar. A resiliência é a principal afirmação desses jovens, reflete a pesquisadora.

Um retrato em números: 51,3% dos entrevistados concordam que "a escola não entende o que querem os jovens" e 78,6% tentaram retornar aos estudos. Também a maioria, 83,6%, pretende trabalhar e 47,8% já fazem "algum trampo".

"Mas é só um dia na semana. Agora eu também estou trabalhando, mas pra mim não é um emprego. Porque é só uma vez na semana, vendendo Totolec. Eu só ganho se eu vender. Não é uma renda que dá pra se sustentar", demonstra Violeta, 19 anos. "Não é obrigado você ter os estudos todinhos. Basta ter uma experiência. Eu trabalhei já de atendente, por tanto tempo. Às vezes eles contrataram por experiência. Se eu colocar meu currículo em qualquer mercadinho, eu acho que eu passo. Na entrevista eu sei conversar, não fico nervosa", dialoga Angélica, 24 anos. "Eu vou atrás de algum emprego do tipo, capinar um terreno", ocupa-se Ipê, 17 anos. "Mas quando não tem, o jeito é chegar nos pés da mãe e implorar. Pedir pelo menos dez reais", emenda Açafrão, 16 anos. Os depoimentos são parte da pesquisa.

"Eles são, extremamente, resilientes. Constroem formas de resistência inventivas. Se essa capacidade criativa pudesse ser canalizada para uma política pública para trabalhar com eles, teríamos um plus de potência, de capacidade de trabalho", une Glória Diógenes. A pesquisadora atenta para a "multiplicidade de possibilidades" que a Geração N guarda: "É uma juventude que atua por projeto e não por carreira, não fazem uma coisa só. Estamos em outra esfera de produção de imaginário juvenil e que as políticas públicas ainda se pautam no modelo moderno do século XX". Para Glória, escola e trabalho "têm que fazer sentido para eles. Quando não faz, eles se esquivam".

Falta de oportunidade de emprego, de apoio da família e o pessimismo - 7% não acreditam em si ou na vida -, contrapõe a socióloga, estão no meio do caminho de projetos pessoais que desejam alcançar a gastronomia e a arte, exemplifica Glória Diógenes. "Eles têm fragilidades… Mas o que fazem com o pouco já é muito e isso mostra que podem fazer muito mais. Se (a política pública) quer pensar em profissionalização, é partir do que sabem fazer, como fazem, para expandir possibilidades. Não partir do como eles deveriam ser e de como gostaríamos que eles fossem. Não podemos construir novas possibilidades de fora para dentro", conclui. (Ana Mary C. Cavalcante)

 

Depoimentos

Além de M., 25 anos, O POVO reproduz trechos da vida de outros dois jovens ouvidos na pesquisa "Eles dizem não ao não": 

 

"Sua história chamou atenção, porque o pastor responsável pelo projeto comentou que ele passava o dia por lá, não tinha faltas e era o primeiro a chegar quando o projeto abria os portões. Embora a exigência para que os jovens frequentem o projeto é que estejam matriculados na escola, C. não está estudando desde o primeiro semestre deste ano (2018). Com medo de ser morto pelas facções, abandonou o sétimo ano do ensino fundamental. Ele comenta que não foi ameaçado diretamente, mas viu seus colegas serem e se assustou. Pouco sai da região do Grande Bom Jardim e revela desconhecer outros bairros e locais da cidade. Seu primeiro trampo foi em uma oficina de bicicletas, na qual trabalhava como 'faz tudo'. C. não deixou claro se pretende voltar a estudar, mas disse sentir falta dos colegas e da atenção de alguns professores com quem conversava. Seu plano para o futuro envolve trabalhar para ajudar a família a ter uma vida melhor. Sua profissão dos sonhos: ser jogador de futebol."

C. 16 anos, estudou até o sétimo ano do ensino fundamental, não trabalha.

"Ao abandonar o primeiro ano do ensino médio na escola pública devido a uma gravidez, A. ficou um tempo 'sem fazer nada' até surgir a oportunidade de fazer um curso de fotografia no Centro Cultural Bom Jardim. Diz que fez muito sacrifício para tentar concluir o curso, algumas vezes não tinha com quem deixar os filhos e os levava para as aulas. Entre os seus planos e sonhos de futuro está o de investir na carreira de fotógrafa. A primeira gravidez aconteceu aos 16 anos. O pai da criança não assumiu. Conta que a mãe a ajudava. A. conheceu o atual namorado no grupo de dança do qual faz parte. A. engravidou desse relacionamento e eles têm um filho de nove meses, moram juntos na casa da família de A. e se desdobram entre cuidar das crianças, trabalhar quando aparece algo e se divertir. A. comenta que uma vez ao mês eles procuram sair somente os dois: vão ao cinema, ou à Praia de Iracema ou ficam nos locais do bairro que mais gostam. Ela diz que só assim conseguem continuar 'apaixonados'."

A., 22 anos, deixou de estudar no primeiro ano do ensino médio, faz bicos como fotógrafa

 

Retrato Nacional

11 MILHÕES de pessoas, na faixa etária dos 15 aos 29 anos, cerca de 20% da população brasileira, não trabalham e não estudam. Os dados são do Banco Mundial.

EM CINCO ANOS, o percentual de jovens de 16 a 29 anos da Geração N aumentou de 22,8% (em 2012) para 25,8% (em 2017), no Brasil. Do total de jovens que não estudam e nem trabalham, 19% são homens e 32,7% são mulheres (em 2016). O levantamento é do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

DE MEADOS DE 2014 a junho de 2018, o número de jovens entre 15 e 29 anos que não estudam, não trabalham e nem procuram emprego saltou de 445 mil pessoas para quase 1,4 milhão. A informação é da consultoria IDados, com base no IBGE.

 

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