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"Chuva é vida"
Reportagem

"Chuva é vida"

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Tipo Notícia Por

Aos poucos, o tempo vai assoprando o dia 24 de abril de 1997 para ainda mais longe. Agora, eu me lembro somente do primeiro susto, na cozinha: dar com os pés na água que entrava pelo corredor da casa, como se o quintal escoasse. Uma suave vazão que, em minutos, passou da altura do rodapé da sala para a altura do nosso joelho e formou uma correnteza no portão da garagem.

Depois, eu me lembro da minha mãe, entre a reza e o desconsolo, em cima da pia da cozinha porque a água imunda atingiria o ferimento na perna dela. Outro flash é meu pai tentando varrer a água do céu para dentro do bueiro. Escuto ainda o barulho da estante - que era quase do tamanho de uma parede e guardava boa parte dos nossos tesouros - caindo. E ressinto o pavor dos ratos, das cobras e das baratas emergindo daquela imundície e roçando em nós.

Na rua paralela, meus tios quase foram levados pela água do canal ao tentar salvar a casa que apodreceu. Um se segurou no outro; só assim escapamos todos. Sei bem dos (intermináveis) dias seguintes: salvar o que nos resta. Enquanto minha mãe tentava recuperar roupas e móveis e meu pai calculava os prejuízos do carro, eu desgrudava fotografias e figurinhas, lavava a lama de diários e papéis de cartas e remediava bonecas que me viram crescer. Aquela chuva monstruosa e desleal fez eu me despedir da infância: das cachoeiras-bicas da vizinhança, da transgressão de tomar banho de farda, dos barcos de papel, do imaginário ingênuo e aventureiro.

Demorei a fazer as pazes com a chuva porque custei a entender que a culpa daquele transtorno vivido pela Cidade (e por meu pequeno, mas significativo, mundo) não era dela - da chuva.

Desde então, andei muito por aí, em reportagens, nos caminhos dos lixos que engolem calçadas ou dos rios asfaltados. Mas foram as andanças pelos sertões que me levaram ao entendimento que possuo hoje, entre as perdas de 1997 e tantas outras: "Chuva é vida", me mostram os sertanejos, oferecendo o de comer, o de beber e o de sonhar, em lugares depois do fim. E nenhuma vida pode ser negada ou maldita, emendam. Toda vida é esperança.

Por isso, se pudessem, os sertanejos guardariam cada pingo d´água que cai do céu, declaram. Ainda é preciso aprender o respeito à natureza e o bem querer. Assim me contaram e assim eu vi (vejo); chuva é um nascimento, uma superação, uma convivência.

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